Acaba
de sair pela Companhia das Letras, de S�o Paulo, As excel�ncias do
governador, um paneg�rico f�nebre dedicado ao governador do Brasil, dom Afonso
Furtado, escrito em 1676, que, at� agora, havia sido publicado apenas em
ingl�s e, por essa mesma raz�o, pouco conhecido pelo p�blico leitor
brasileiro e portugu�s. Trata-se do manuscrito espanhol Vida o Panegvirico
fvnebre al Senor Alfonso Furtado Castro do Rio de Mendomc�, de Juan Lopes
Sierra, apresentado em transcri��o paleogr�fica in�dita pelo historiador
norte-americano Stuart B. Schwartz, professor titular da Universidade de Yale e
doutor pela Columbia University, descobridor do documento, com tradu��o para o
portugu�s de �lcir P�cora, professor livre-docente da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp).
O
documento descreve as a��es, a vida e a morte de dom Afonso Furtado de Castro
do Rio de Mendon�a, visconde de Barbacena e governador do Brasil (1671-1675).
Escrita por uma testemunha ocular de grande parte dos acontecimentos, a obra
fornece detalhes, at� agora desconhecidos, da administra��o desse governador.
Como observa Schwartz na introdu��o, s�o especialmente not�veis as
observa��es acerca de uma s�rie de campanhas militares pelo interior do pa�s
com o objetivo de dominar na��es ind�genas hostis e procurar riquezas
minerais, o que torna o documento fundamental para a compreens�o de certos
aspectos hist�rico-econ�micos do Brasil colonial.
Em
outras palavras: as revela��es do manuscrito s�o decisivas para se
compreender as estrat�gias do governo da prov�ncia diante da baixa do mercado
internacional do a��car, o recrudescimento da guerra contra os �ndios e as
formas de atua��o dos paulistas em sua captura. Igualmente permitem seguir as
intrigas urdidas em torno das supostas descobertas de minas de prata.
Diz
Schwartz que, em 1968, um alfarrabista lisboeta perguntou-lhe se gostaria de
comprar um manuscrito assinado por Juan Lopes Sierra e datado de 1676 na �Ciudad
de San Saluador Bahia de Todos los Santos�. Naquele ver�o teve o pesquisador
a oportunidade de examinar o manuscrito que, por sua recomenda��o, foi
posteriormente adquirido pela Biblioteca James Ford Bell da Universidade de
Minnesota, onde ele era ent�o professor de Hist�ria.
Mais
tarde, Schwartz decidiu que, devido ao valor do documento e sua raridade (a
�nica outra c�pia que se conhece pertence � Biblioteca do Pal�cio da Ajuda,
em Lisboa), o manuscrito deveria ser colocado � disposi��o do grande
p�blico, imprimindo-se uma edi��o comentada da vers�o em ingl�s, como parte
de uma s�rie de publica��es da Biblioteca James Ford Bell sobre a expans�o
europ�ia. Em 1998, com Alcir P�cora, Schwartz come�ou a discutir a
possibilidade de uma colabora��o nesse projeto.
O
resultado � a atual edi��o e tradu��o para o p�blico de l�ngua portuguesa
em que P�cora examina a composi��o ret�rica de um manuscrito que impressiona
pela simetria de suas partes, pela habilidade de elocu��o de um autor que se
apresenta como �r�stico�, pela narra��o d�plice e, ainda, pela rica
descri��o dos aparatos f�nebres com que se celebravam as ex�quias de um
personagem importante na Bahia do Seiscentos.
Entre
1972 e 1974, Schwartz consultou em v�rias ocasi�es a outra vers�o conhecida
do paneg�rico na Biblioteca da Ajuda, constatando que ambas s�o bastante
semelhantes e que a escrita parece ser da mesma pessoa, embora o manuscrito de
Lisboa omita algumas sec��es contidas no de Minnesota. Para Schwartz, o
manuscrito de Minnesota parece ser o original, enquanto o da Ajuda seria uma
c�pia para apresenta��o, enriquecida com tr�s poemas acr�sticos decorativos
e um frontisp�cio. No manuscrito de Minnesota, h� a refer�ncia a um �tratado
de paz entre aquella e la corona espa�ola�, o que indica que o autor n�o
estava em Portugal quando o escreveu, enquanto o da Ajuda refere-se a �esta e
la corona espa�ola�, o que significa que foi escrito no Reino.
E
quem seria esse misterioso Juan Lopes Sierra? Diz Schwartz que especulou,
durante um bom tempo, que este Juan Lopes Sierra seria o poss�vel autor de O
anti-catastrophe, um famoso texto pol�tico escrito entre 1696 e 1700 que
descrevia um golpe de Estado na Corte portuguesa entre os anos de 1667 e 1683,
quando dom Afonso VI foi destronado por seu irm�o dom Pedro II. Um certo Jo�o
Lopes Serra escrevera da Bahia, em 1671, uma carta em que declarava ter sido o
autor de um livro intitulado Antecatastrophe, mas, como a obra
desaparecera, n�o se sabe se se tratava da famosa descri��o do golpe
palaciano ou, simplesmente, de algum outro trabalho com o mesmo t�tulo.
A
reivindica��o da autoria, segundo Schwartz, chamou a aten��o de Camilo
Aureliano da Silva e Souza, respons�vel pela publica��o do famoso Anticatastrophe
em 1845. Silva e Souza, com base em evid�ncias internas, rejeitou a autoria de
Lopes Serra, opini�o compartilhada por outro especialista, Gast�o Melo de
Matos. Nenhum dos estudiosos conhecia o Paneg�rico f�nebre, em que
Lopes Sierra revelava j� ter 72 anos em 1676. � parte essa indica��o, diz
Schwartz, n�o existem refer�ncias sobre esse autor em discuss�es sobre
literatura portuguesa e brasileira. O historiador, por�m, lembra que em uma
carta do conde de Atouguia, governador do Brasil (1654-1657), para a C�mara de
Salvador h� a cita��o de um �Jo�o Lopes Serra� que requisitava patente
de um novo modo de produ��o de a��car que utilizava menos lenha.
H�
ainda a possibilidade de �Juan Lopes Sierra� n�o passar de um pseud�nimo,
a exemplo do licenciado Manuel Pereira Rabello, considerado o autor da primeira
biografia de Greg�rio de Matos e Guerra, mas que n�o passa de uma m�scara,
uma persona liter�ria do pr�prio poeta, como mostra o professor Adriano
Esp�nola, da Universidade Federal do Cear�, em As artes de enganar: um
estudo das m�scaras po�ticas e biogr�ficas de Greg�rio de Mattos (Rio de
Janeiro, Topbooks Editora, 2000). Como ressalta Schwartz, muitos dos literatos
baianos do s�culo XVII eram capazes de escrever em espanhol.
Nada
contra o trabalho de Schwartz, que, ali�s, s� merece elogios. O que fica,
por�m, dessa hist�ria � uma sensa��o de frustra��o em raz�o da inc�ria
com que as autoridades portuguesas e brasileiras trataram ao longo do tempo os
documentos de nossa Hist�ria comum. A ponto de hoje documentos
important�ssimos como esse estarem em bibliotecas de universidades
norte-americanas. Claro est� que esse documento s� foi adquirido por Schwartz,
em nome de uma universidade norte-americana, porque algum mau cidad�o o
surrupiou de algum arquivo p�blico ou particular. Ou, ent�o, o descendente de
algum nobre falido o retirou de sua pr�pria heran�a para, em troca do vil
metal, coloc�-lo para circular entre os alfarrabistas, quase sempre gente de
bem poucos escr�pulos em rela��o � hist�ria p�tria.
Certa
vez, um funcion�rio do Arquivo Hist�rico Ultramarino, de Lisboa, contou-me
que, h� n�o muito tempo, talvez � �poca salazarista, era praxe que s� os
chamados �doutores� tivessem acesso ao acervo da casa. Eram �ntimos do
diretor e n�o poucas vezes sa�am com os manuscritos embaixo do bra�o para
estud�-los mais detidamente em casa. Se acontecesse de morrer um desses �doutores�,
os manuscritos ficavam nas m�os da fam�lia que, quase sempre, sem conhecer o
seu real valor, terminava por negoci�-los a pre�os m�dicos.
De
um jeito ou de outro, apareciam nas m�os dos alfarrabistas que, sempre atentos
ao brilho verde dos d�lares, acabavam vendendo-os aos endinheirados
pesquisadores norte-americanos. E, assim, a nossa Hist�ria em boa parte emigrou
para os arquivos norte-americanos. A ponto de hoje muitos estudiosos brasileiros
e portugueses serem obrigados a pedir bolsas para estudar documentos de nossa
Hist�ria nos Estados Unidos. Uma vergonha.