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Livro: Hiroshima
Autor: John Hersey
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2002
N�mero de p�ginas: 172
Hiroshima, o rosto do terror

Adelto Gon�alves

Para aqueles que choraram e se solidarizaram com as fam�lias das v�timas do atentado de 11 de Setembro de 2001 ao World Trade Center, em Nova York, um bom contraponto para sentir um pouco da maldade que os norte-americanos j� espalharam pelo mundo pode ser a leitura de Hiroshima, de John Hersey, aquela que � considerada a mais importante reportagem do s�culo 20, pelo menos segundo uma enquete feita em 1999 pela New York University. Hiroshima � um retrato de seis sobreviventes da bomba at�mica, um ano depois da explos�o e quarenta anos mais tarde, feito por um jornalista norte-americano.
Como se sabe, a bomba at�mica matou 100 mil pessoas na cidade japonesa de Hiroshima, em 6 de agosto de 1945. Naquele dia, depois um clar�o silencioso, uma torre de poeira e fragmentos de fiss�o se ergueu no c�u da cidade, deixando cair gotas imensas � do tamanho de bolas de gude � da pavorosa mistura. A bomba explodiu exatamente �s 8h15 da manh�, quando a cidade come�ava a se preparar para mais um dia de trabalho. Um clar�o de fogo varreu a cidade carbonizando o que encontrava pela frente.
Aqueles que n�o morreram carbonizados � ou em raz�o do deslocamento de ar que levara casas e pr�dios como se fossem de papel�o � come�aram a vagar pela cidade, alguns como se fossem mortos-vivos: muitos em estado horripilante, o rosto queimado, as �rbitas vazias, as faces marcadas pelo l�quido que escorrera das c�rneas derretidas, talvez porque fossem soldados da defesa antia�rea e estivessem olhando para cima, quando a bomba explodiu. Outros sobreviventes � metade da popula��o de 200 mil habitantes � vagaram em busca de ajuda em hospitais que, igualmente, estavam destru�dos. Queriam tratar de suas queimaduras e fraturas � muitos perderam n�o s� os olhos mas tamb�m os membros.
Um ano depois, a reportagem de John Hersey reconstitu�a o dia da explos�o a partir do depoimento de seis sobreviventes. O texto mudou a edi��o inteira da revista The New Yorker, uma das mais importantes publica��es semanais dos Estados Unidos. O trabalho do rep�rter alcan�ou uma repercuss�o extraordin�ria n�o s� dentro dos Estados Unidos como fora, permitindo ao mundo tomar consci�ncia do poder de destrui��o das armas nucleares. Despertou, com isso, a ira do governo norte-americano, que temia a reprova��o de seus cidad�os diante do brutal atentado.
� �poca, Hersey, que morreu na Fl�rida em 1993, tinha 32 anos. Nascera China, mas mudara para os Estados Unidos aos 11 anos de idade, estudado em Cambridge e Yale. J� era um jornalista experiente e colaborava com a The New Yorker, que era dirigida por dois veteranos da imprensa, Harold Ross e William Shawn, que deram � revista a fama de publicar os melhores textos. A curiosidade era que a dupla, independente da notoriedade dos colaboradores, reescrevia todos os textos que chegavam � reda��o.
Em 1946, Hersey estava cobrindo o p�s-guerra no Oriente com as contas rachadas � num acordo inusitado � pelas revistas Life e The New Yorker. Da China, ele aceitou a encomenda., mas sugeriu que o esperassem retornar a Nova York para publicar a reportagem, que deveria sair por volta do primeiro anivers�rio do lan�amento da bomba. Ficou no Jap�o de 25 de maio a 12 de junho. Nesse espa�o de tempo, entrevistou os seus personagens e outros habitantes de Hiroshima, pedindo a cada que reconstru�sse com a mem�ria ainda bem fresca o dia da explos�o e os subseq�entes.
Ao retornar, Hersey fez v�rios ajustes na mat�ria, atendendo a pedidos dos editores. A reportagem saiu na edi��o de 31 de agosto de 1946. Os 300 mil exemplares da The New Yorker, pela primeira vez dedicada apenas a um assunto, esgotaram-se rapidamente. E, assim, os norte-americanos e o mundo conheceram em detalhes as imagens que os demais artigos haviam evitado contar.
Sem se deixar levar por pieguice ou exagerar nos adjetivos, Hersey escreveu um texto enxuto, direto, porque sabia que estava com uma historia extraordin�ria nas m�os. Bastava deixar o texto fluir, descrevendo os pormenores daquilo que parecia indescrit�vel � e mesmo inimagin�vel ainda hoje. �, certamente, por isso que o seu texto seco, sem discursos humanit�rios, mais de meio s�culo depois, n�o perde a capacidade de chocar. Constitui um libelo contra a insanidade humana.
Para escrever essa reportagem, Hersey tratou de mostrar as dificuldades dos sobreviventes em procurar familiares que haviam desaparecido e ajudar a levar as pessoas para os locais de atendimento. Superado o primeiro impacto e mesmo sem que as pessoas tivessem uma explica��o l�gica para o fato, os hospitais, mesmo em destro�os, logo come�aram a ser organizados. Uma daquelas pessoas, o reverendo Kiyoshi Tanimoto, pastor da Igreja Metodista, contou pacientemente a Hersey como foram aqueles dias: "Do topo do outeiro contemplou um panorama espantoso. N�o s� uma parte de Koi, como esperava, mas toda a �rea de Hiroshima que conseguia vislumbrar atr�s da n�voa despendia um espesso e pavoroso miasma. Nuvens de fuma�a, pr�ximas e distantes, despontavam pouco a pouco por entre a poeira. O reverendo se perguntou como um c�u silencioso poderia ter causado tanta destrui��o: n�o se deixaria de ouvir nem mesmo uma pequena esquadrilha, voando alto. As casas das redondezas ardiam em chamas e, quando gotas de �gua imensas, do tamanho de bolinhas de gude, come�aram a cair, ele imaginou que provinham das mangueiras que os bombeiros estariam usando para combater os inc�ndios [...]."
"[...] O reverendo se lembrou das grandes queimaduras que tinha visto durante o dia: amarelas a princ�pio, depois vermelhas e intumescidas, com a pele solta e, � noite, supuradas e f�tidas. Com a montante da mar�, a haste de bambu se tornara curta demais, e ele teve de us�-la como remo na maior parte da travessia. Chegando ao lado oposto, carregou os corpos viscosos ribanceira acima. E repetia para si mesmo: "S�o seres humanos". Precisou fazer tr�s viagens para transport�-los at� a barranca [...]".
Ao ampliar o assunto, procurando abord�-lo sob v�rios aspectos, Hersey produziu uma grande reportagem, apresentando o que exatamente faltara nas mat�rias que se haviam feito at� ent�o sobre a explos�o da bomba nuclear � quase todas sem personagens. Em outras palavras: com sua reportagem, Hersey dava rosto � cat�strofe da bomba. E o horror passava a ter nome, idade e sexo. Existe algo mais humano do que o relato do sofrimento alheio?
"[...] Muita gente que n�o morrera de imediato teve n�usea, dor de cabe�a, diarr�ia, mal-estar e febre por v�rios dias. Os m�dicos n�o sabiam ao certo se alguns desses sintomas se deviam � radia��o ou ao abalo nervoso. O segundo est�gio tivera in�cio dez ou quinze dias depois da bomba. O primeiro sintoma foi a queda de cabelo, seguida de diarr�ia e febre que, em alguns casos, atingiu 41 graus. Entre 25 e trinta dias ap�s a explos�o, surgiram dist�rbios sangu�neos: sangramento das gengivas, brusca diminui��o dos leuc�citos e aparecimento de pet�quias na pele e nas membranas mucosas. A leucopenia reduz a resist�ncia a infec��es; por isso, as feridas demoravam tanto para fechar-se e muitos pacientes tinham inflama��es na garganta a na boca [...]".
Quarenta anos mais tarde, Hersey voltou a Hiroshima e escreveu o �ltimo cap�tulo da hist�ria dos hibakushas � as pessoas atingidas pelos efeitos da bomba que passaram a ter de enfrentar o preconceito social para se readaptar � sociedade. Reencontrou n�o s� uma cidade alegre e recuperada, mas tamb�m seus entrevistados. Procurou, ent�o, contar a hist�ria de vida de cada um desde aquele fat�dico dia.
Em sua investiga��o, Hersey aliou o rigor da informa��o jornal�stica � qualidade de um texto liter�rio. Ao contr�rio, por�m, do que muitos te�ricos norte-americanos disseram e a propaganda da editora para o livro reafirma, n�o inventava ali nenhum g�nero de jornalismo . O que chamam de jornalismo liter�rio � ou New Journalism (Novo Jornalismo) � sempre existiu, ou ao menos existiu desde que literatos ligaram-se ao jornalismo.
O que h�, de fato, � uma subservi�ncia intelectual em rela��o ao que os norte-americanos dizem quando se anunciam como precursores disso e daquilo. A ponto de hoje, no Brasil, autores de livros sobre t�cnicas de reportagem reproduzirem sem contestar o que l�em em obras norte-americanas, atribuindo, indistintamente, a Skeets Miller ou a Gay Talese ou a Truman Capote ou mesmo a John Hersey a cria��o de um g�nero de jornalismo que estabelecia nova maneira de relatar fatos, ou seja, o jornalismo liter�rio ou Novo Jornalismo.
Quem na l�ngua portuguesa repete isso, com certeza, n�o leu Os Sert�es (1902), de Euclides da Cunha, que conta a destrui��o por for�as do ex�rcito do arraial de Canudos no interior do Nordeste, originalmente reportagens escritas para o jornal O Estado de S.Paulo em 1897.
NetHist�ria 1�/02/2003