Para
aqueles que choraram e se solidarizaram com as fam�lias das v�timas do
atentado de 11 de Setembro de 2001 ao World Trade Center, em Nova York, um bom
contraponto para sentir um pouco da maldade que os norte-americanos j�
espalharam pelo mundo pode ser a leitura de Hiroshima, de John Hersey,
aquela que � considerada a mais importante reportagem do s�culo 20, pelo menos
segundo uma enquete feita em 1999 pela New York University. Hiroshima �
um retrato de seis sobreviventes da bomba at�mica, um ano depois da explos�o e
quarenta anos mais tarde, feito por um jornalista norte-americano.
Como
se sabe, a bomba at�mica matou 100 mil pessoas na cidade japonesa de Hiroshima,
em 6 de agosto de 1945. Naquele dia, depois um clar�o silencioso, uma torre de
poeira e fragmentos de fiss�o se ergueu no c�u da cidade, deixando cair gotas
imensas � do tamanho de bolas de gude � da pavorosa mistura. A bomba
explodiu exatamente �s 8h15 da manh�, quando a cidade come�ava a se preparar
para mais um dia de trabalho. Um clar�o de fogo varreu a cidade carbonizando o
que encontrava pela frente.
Aqueles
que n�o morreram carbonizados � ou em raz�o do deslocamento de ar que levara
casas e pr�dios como se fossem de papel�o � come�aram a vagar pela cidade,
alguns como se fossem mortos-vivos: muitos em estado horripilante, o rosto
queimado, as �rbitas vazias, as faces marcadas pelo l�quido que escorrera das
c�rneas derretidas, talvez porque fossem soldados da defesa antia�rea e
estivessem olhando para cima, quando a bomba explodiu. Outros sobreviventes �
metade da popula��o de 200 mil habitantes � vagaram em busca de ajuda em
hospitais que, igualmente, estavam destru�dos. Queriam tratar de suas
queimaduras e fraturas � muitos perderam n�o s� os olhos mas tamb�m os
membros.
Um
ano depois, a reportagem de John Hersey reconstitu�a o dia da explos�o a
partir do depoimento de seis sobreviventes. O texto mudou a edi��o inteira da
revista The New Yorker, uma das mais importantes publica��es semanais
dos Estados Unidos. O trabalho do rep�rter alcan�ou uma repercuss�o
extraordin�ria n�o s� dentro dos Estados Unidos como fora, permitindo ao
mundo tomar consci�ncia do poder de destrui��o das armas nucleares.
Despertou, com isso, a ira do governo norte-americano, que temia a reprova��o
de seus cidad�os diante do brutal atentado.
�
�poca, Hersey, que morreu na Fl�rida em 1993, tinha 32 anos. Nascera China,
mas mudara para os Estados Unidos aos 11 anos de idade, estudado em Cambridge e
Yale. J� era um jornalista experiente e colaborava com a The New Yorker,
que era dirigida por dois veteranos da imprensa, Harold Ross e William Shawn,
que deram � revista a fama de publicar os melhores textos. A curiosidade era
que a dupla, independente da notoriedade dos colaboradores, reescrevia todos os
textos que chegavam � reda��o.
Em
1946, Hersey estava cobrindo o p�s-guerra no Oriente com as contas rachadas �
num acordo inusitado � pelas revistas Life e The New Yorker. Da
China, ele aceitou a encomenda., mas sugeriu que o esperassem retornar a Nova
York para publicar a reportagem, que deveria sair por volta do primeiro anivers�rio
do lan�amento da bomba. Ficou no Jap�o de 25 de maio a 12 de junho. Nesse
espa�o de tempo, entrevistou os seus personagens e outros habitantes de
Hiroshima, pedindo a cada que reconstru�sse com a mem�ria ainda bem fresca o
dia da explos�o e os subseq�entes.
Ao
retornar, Hersey fez v�rios ajustes na mat�ria, atendendo a pedidos dos
editores. A reportagem saiu na edi��o de 31 de agosto de 1946. Os 300 mil
exemplares da The New Yorker, pela primeira vez dedicada apenas a um
assunto, esgotaram-se rapidamente. E, assim, os norte-americanos e o mundo
conheceram em detalhes as imagens que os demais artigos haviam evitado contar.
Sem
se deixar levar por pieguice ou exagerar nos adjetivos, Hersey escreveu um texto
enxuto, direto, porque sabia que estava com uma historia extraordin�ria nas
m�os. Bastava deixar o texto fluir, descrevendo os pormenores daquilo que
parecia indescrit�vel � e mesmo inimagin�vel ainda hoje. �, certamente, por
isso que o seu texto seco, sem discursos humanit�rios, mais de meio s�culo
depois, n�o perde a capacidade de chocar. Constitui um libelo contra a
insanidade humana.
Para
escrever essa reportagem, Hersey tratou de mostrar as dificuldades dos
sobreviventes em procurar familiares que haviam desaparecido e ajudar a levar as
pessoas para os locais de atendimento. Superado o primeiro impacto e mesmo sem
que as pessoas tivessem uma explica��o l�gica para o fato, os hospitais,
mesmo em destro�os, logo come�aram a ser organizados. Uma daquelas pessoas, o
reverendo Kiyoshi Tanimoto, pastor da Igreja Metodista, contou pacientemente a
Hersey como foram aqueles dias: "Do
topo do outeiro contemplou um panorama espantoso. N�o s� uma parte de Koi,
como esperava, mas toda a �rea de Hiroshima que conseguia vislumbrar atr�s da
n�voa despendia um espesso e pavoroso miasma. Nuvens de fuma�a, pr�ximas e
distantes, despontavam pouco a pouco por entre a poeira. O reverendo se
perguntou como um c�u silencioso poderia ter causado tanta destrui��o: n�o
se deixaria de ouvir nem mesmo uma pequena esquadrilha, voando alto. As casas
das redondezas ardiam em chamas e, quando gotas de �gua imensas, do tamanho de
bolinhas de gude, come�aram a cair, ele imaginou que provinham das mangueiras
que os bombeiros estariam usando para combater os inc�ndios [...]."
"[...]
O reverendo se lembrou das grandes queimaduras que tinha visto durante o dia:
amarelas a princ�pio, depois vermelhas e intumescidas, com a pele solta e, �
noite, supuradas e f�tidas. Com a montante da mar�, a haste de bambu se
tornara curta demais, e ele teve de us�-la como remo na maior parte da
travessia. Chegando ao lado oposto, carregou os corpos viscosos ribanceira
acima. E repetia para si mesmo: "S�o seres humanos". Precisou fazer
tr�s viagens para transport�-los at� a barranca [...]".
Ao
ampliar o assunto, procurando abord�-lo sob v�rios aspectos, Hersey produziu
uma grande reportagem, apresentando o que exatamente faltara nas mat�rias que
se haviam feito at� ent�o sobre a explos�o da bomba nuclear � quase todas
sem personagens. Em outras palavras: com sua reportagem, Hersey dava rosto �
cat�strofe da bomba. E o horror passava a ter nome, idade e sexo. Existe algo
mais humano do que o relato do sofrimento alheio?
"[...]
Muita gente que n�o morrera de imediato teve n�usea, dor de cabe�a,
diarr�ia, mal-estar e febre por v�rios dias. Os m�dicos n�o sabiam ao certo
se alguns desses sintomas se deviam � radia��o ou ao abalo nervoso. O segundo
est�gio tivera in�cio dez ou quinze dias depois da bomba. O primeiro sintoma
foi a queda de cabelo, seguida de diarr�ia e febre que, em alguns casos,
atingiu 41 graus. Entre 25 e trinta dias ap�s a explos�o, surgiram dist�rbios
sangu�neos: sangramento das gengivas, brusca diminui��o dos leuc�citos e
aparecimento de pet�quias na pele e nas membranas mucosas. A leucopenia reduz a
resist�ncia a infec��es; por isso, as feridas demoravam tanto para fechar-se
e muitos pacientes tinham inflama��es na garganta a na boca [...]".
Quarenta
anos mais tarde, Hersey voltou a Hiroshima e escreveu o �ltimo cap�tulo da
hist�ria dos hibakushas � as pessoas atingidas pelos efeitos da bomba que
passaram a ter de enfrentar o preconceito social para se readaptar � sociedade.
Reencontrou n�o s� uma cidade alegre e recuperada, mas tamb�m seus
entrevistados. Procurou, ent�o, contar a hist�ria de vida de cada um desde
aquele fat�dico dia.
Em
sua investiga��o, Hersey aliou o rigor da informa��o jornal�stica �
qualidade de um texto liter�rio. Ao contr�rio, por�m, do que muitos te�ricos
norte-americanos disseram e a propaganda da editora para o livro reafirma, n�o
inventava ali nenhum g�nero de jornalismo . O que chamam de jornalismo
liter�rio � ou New Journalism (Novo Jornalismo) � sempre existiu, ou ao
menos existiu desde que literatos ligaram-se ao jornalismo.
O
que h�, de fato, � uma subservi�ncia intelectual em rela��o ao que os
norte-americanos dizem quando se anunciam como precursores disso e daquilo. A
ponto de hoje, no Brasil, autores de livros sobre t�cnicas de reportagem
reproduzirem sem contestar o que l�em em obras norte-americanas, atribuindo,
indistintamente, a Skeets Miller ou a Gay Talese ou a Truman Capote ou mesmo a
John Hersey a cria��o de um g�nero de jornalismo que estabelecia nova maneira
de relatar fatos, ou seja, o jornalismo liter�rio ou Novo Jornalismo.
Quem
na l�ngua portuguesa repete isso, com certeza, n�o leu Os Sert�es
(1902), de Euclides da Cunha, que conta a destrui��o por for�as do ex�rcito
do arraial de Canudos no interior do Nordeste, originalmente reportagens
escritas para o jornal O Estado de S.Paulo em 1897.