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a partir do terremoto de 1� de novembro de 1755 que come�a A longa viagem
da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa � Independ�ncia
do Brasil, de Lilia Moritz Schwarcz, percorrendo acontecimentos
fundamentais da vida de Portugal e do Brasil, sempre atrav�s dos livros. O
texto acompanha a reconstru��o do acervo da Biblioteca Real por iniciativa do
marqu�s de Pombal, os tempos incertos de dona Maria I, a angustiante fuga da
fam�lia real para o Brasil, diante da iminente entrada em Lisboa da
(esfrangalhada) tropa do general Junot, e a nova vida nos tr�picos, at� chegar
ao processo da independ�ncia brasileira, quando o governo do novo pa�s teve de
pagar uma elevada quantia para ficar com o acervo.
Tudo
isso porque sempre os livros deram prest�gio e representaram um s�mbolo de
poder para os reis. Ao evadir-se de Portugal, conta Lilia Schwarcz, dom Jo�o
n�o se esqueceu dos livros, que, no entanto, ao contr�rio do que se lia em
outras obras, n�o vieram num primeiro momento com a fam�lia real. Teriam
ficado em caixotes abandonados no cais, permanecendo em Bel�m ao sol e �
chuva, at� que retornaram ao Pal�cio da Ajuda. Dom Jo�o, em meio a tantos
contratempos e na balb�rdia da fuga apressada, s� no Rio de Janeiro dar-se-ia
conta de que chegara sem suas preciosidades.
J�
mais seguro em solo brasileiro, em janeiro de 1809, deu ordens para �irem
encaixotando e embarcando a Livraria, pap�is importantes do Pa�o� e da Torre
do Tombo. E, em princ�pios de 1810, antes que uma nova invas�o chegasse a
Portugal, come�avam a ser transferidos para o Rio de Janeiro os Manuscritos da
Coroa e uma cole��o de seis mil c�dices que se achavam no Pa�o das
Necessidades. A segunda remessa deixaria Lisboa em mar�o de 1811, acompanhada
pelo ajudante de bibliotec�rio Lu�s Joaquim dos Santos Marrocos. A
transfer�ncia da Biblioteca completar-se-ia em setembro daquele ano, com a
remessa dos ��ltimos 87 caixotes de livros�.
N�o
h� d�vida de que A longa viagem da biblioteca dos reis: do
terremoto de Lisboa � Independ�ncia do Brasil � um livro
monumental - n�o s� porque reconstitui essa saga dos livros dos reis como
pelas informa��es reunidas e reprodu��o de v�rias ilustra��es -, a
merecer lugar cativo nas bibliotecas p�blicas e nas universidades brasileiras e
portuguesas. Mas h� reparos a fazer, pois, embora a autora e seus colaboradores
tenham contado com o apoio cultural da construtora Norberto Odebrecht, o que
significa tempo e recursos, o livro, por um lado, n�o se aprofunda em v�rias
quest�es e, por outro, algumas vezes, nada acrescenta, limitando-se a repetir
informa��es de obras impressas.
Uma
das quest�es cruciais � a controv�rsia a respeito de quantas pessoas
embarcaram a 29 de novembro de 1807 com o pr�ncipe regente dom Jo�o rumo ao
Brasil. Um pesquisador brasileiro, o arquiteto Nireu Oliveira Cavalcanti,
professor da Universidade Federal Fluminense, em tese de doutoramento (1997)
ainda in�dita em livro, garantiu, com base em pesquisas em fontes prim�rias e
impressas, que foram menos de 500 pessoas.
Lilia
Schwarcz, por�m, preferiu passar ao largo da quest�o, ficando olimpicamente em
cima do muro. Depois de escrever que foram 20 mil os acompanhantes de dom Jo�o
em As barbas do imperador (1998), desta vez, optou por relacionar v�rios
autores em que os n�meros variam de 8 a 15 mil, embora, em nota de rodap�,
tamb�m cite as conclus�es de Cavalcanti.
Quer
dizer, com os recursos e o tempo de que dispunha, tinha todas as condi��es
para chegar a uma conclus�o definitiva, fazendo as pesquisas necess�rias no
Arquivo Nacional e na Biblioteca do Rio de Janeiro e na Torre do Tombo, na
Biblioteca Nacional e na Biblioteca do Pal�cio da Ajuda. Mas n�o. Preferiu,
�s vezes, incompreensivelmente, citar autores que, de maneira clara,
limitaram-se a repetir a informa��o dada por Thomas O�Neill, um tenente
irland�s que estava a bordo de um dos navios da esquadra inglesa.
O`Neill
em A concise and accurate account of the proceeding of the squadron under the
command of admiral Sir William Sidney Smith, Londres, 1810, disse que 15 mil
pessoas acompanharam dom Jo�o. E foi nessa informa��o que os historiadores do
s�culo 19 se basearam para narrar o acontecimento. N�o h� not�cia, por�m,
de que o irland�s, algum dia, tenha pisado o solo de Lisboa: viu tudo de longe,
sem condi��es para um c�lculo confi�vel, como j� foi contestado por
Oliveira Lima em D. Jo�o VI no Brasil (1908/1996), para quem teriam sido
oito mil os acompanhantes.
Aquele
n�mero tem sido tamb�m repetido ad nauseum por historiadores
brasileiros e portugueses, como se pode ver � pagina 161 de Os sentidos do
Imp�rio: quest�o nacional e quest�o colonial na crise do antigo regime
portugu�s (1993), em que Valentim Alexandre repete o que leu em Luz Soriano,
Hist�ria da Guerra Civil, Lisboa, 1866-1890, 1� �poca, tomo II, p.
675, segundo o qual o embarque da fam�lia real rumo ao Brasil em 1807 deu-se em
�36 navios, com cerca de quinze mil pessoas a bordo�. Outro historiador
portugu�s, Rocha Martins, diz que seriam 13.800, enquanto o ingl�s Alan K.
Manchester optou por 10 mil.
Lilia
Schwarcz n�o levou em conta o argumento de Cavalcanti, para quem teria sido
imposs�vel acomodar tanta gente nas naus. �Para transportar 15 mil pessoas,
seriam necess�rios 250 navios�, diz o historiador, lembrando que, se tanta
gente acompanhasse o pr�ncipe regente, certamente, as naus teriam ido ao fundo
antes de perder de vista a Torre de Bel�m.
Na
verdade, o �nico documento relacionado por Lilia Schwarcz que pode contestar as
conclus�es a que Cavalcanti chegou � o manuscrito Pap�is particulares do
conde de Linhares (dom Rodrigo de Sousa Coutinho) que levantou na Funda��o
Biblioteca Nacional (ms. I,29,20,1,doc.7), no qual, ap�s uma rela��o de
nobres que teriam embarcado, l�-se uma informa��o taxativa: �E mais 5 mil
pessoas� (p�g. 217). Mas quem seriam essas cinco mil pessoas? Onde estariam
os seus nomes e os seus passaportes?
Depois
de corrigir que apenas 19 naus chegaram ao Brasil - os demais seriam da armada
inglesa, que dera prote��o � fam�lia real -, Cavalcanti lembra que as
circunst�ncias mostram que teria sido imposs�vel que tanta gente viesse para o
Brasil �quela �poca. �Os n�meros que d�o corresponderiam a 8% da
popula��o de Lisboa e a 25% da do Rio de Janeiro�, diz, cobrando l�gica dos
historiadores que se limitam a reproduzir o que l�em em livros impressos e n�o
colocam a cabe�a para funcionar.
Cavalcanti
foi para o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro onde h� uma rela��o dos
passageiros que desembarcaram com dom Jo�o: n�o passam de 140, contou. Ent�o,
tratou de som�-los com os passaportes da �poca, registrando as pessoas que
vieram pouco depois. �D� pouco mais de 400 pessoas�, garante, questionando
que nenhum historiador, por exemplo, tenha parado para pensar que n�o daria
para abrigar 15 mil pessoas no Rio de Janeiro de ent�o. �Seria um tumulto
inimagin�vel�.
Al�m
das fontes, Cavalcanti usou tamb�m o bom senso. �As circunst�ncias da viagem
da fam�lia real mostram que seria imposs�vel vir tanta gente�, diz,
lembrando que o ex�rcito de Junot parou �s portas de Lisboa e houve uma
tentativa de negocia��o. O pr�ncipe regente, rapidamente, aproveitou para
tratar da retirada, uma imagem que contraria a fama de moleir�o que alguns
historiadores lhe impingiram.
�Nessas
circunst�ncias, como avisar 15 mil pessoas e manter segredo?�, questiona o
historiador, lembrando que, nos c�dices da Intend�ncia Geral de Policia que
est�o na Torre do Tombo, h� registros de que o intendente tratou de proibir a
abertura de casas de pasto nas redondezas do Pal�cio da Ajuda e no Rossio para
evitar a propaga��o de rumores sobre a sa�da iminente da fam�lia real. S�
que Lilia Schwarcz n�o se lembrou de consultar os c�dices da Intend�ncia na
Torre do Tombo.
Depois,
em nota de rodap� (� pag. 454), registra que Cavalcanti concluiu que as casas
requeridas para as aposentadorias dos que chegaram ao Rio de Janeiro com dom
Jo�o n�o chegaram a 140. Em seguida, aparentemente inconformada com a ousadia
do arquiteto em contestar o que � consagrado pela historiografia oficial,
op�e, absurdamente, uma afirma��o de Lu�s Marrocos, funcion�rio da Real
Biblioteca tamb�m transferido, que, em carta a seu pai em Portugal, confessava
que �estava com dificuldade para conseguir morada na cidade�, como se essa
declara��o acrescentasse algo � discuss�o. N�o leva em conta que o
funcion�rio poderia muito bem estar com dificuldades para arrumar casa, ainda
que o n�mero de rec�m-chegados n�o chegasse a 500, como afian�a o
pesquisador.
Embora
seja rico em fontes prim�rias - as �nicas confi�veis, como se conclui da
confus�o criada por historiadores que se limitam a repetir o l�em em livros
impressos -, A longa viagem da biblioteca do reis peca tamb�m em
quest�es fundamentais da Hist�ria do Brasil, exatamente por seguir autores que
n�o merecem a menor credibilidade. Um desses � Luiz Edmundo, autor de v�rios
livros sobre o Rio antigo nos quais � vis�vel a sua despreocupa��o com as
fontes, tantos foram j� os erros flagrados.
De
fato, embora tenha admitido que Luiz Edmundo recorre a �imagens um tanto
fantasiosas� (p�g. 356), a autora, em vez de valer-se de fontes prim�rias,
prefere cit�-lo abundantemente, a exemplo do que faz com outros historiadores
igualmente dignos de pouco cr�dito, como Oliveira Martins e Rocha Martins, que
nunca foram rigorosos em citar suas fontes. At� porque, na �poca em que
escreviam, esse n�o era um requisito exigido dos historiadores.
Apesar
destas cr�ticas - e de erros banais, como afirmar (� pag. 241) que Manuel
In�cio da Silva Alvarenga fora acusado de envolvimento com a Inconfid�ncia
Mineira (1789), quando o foi com a Inconfid�ncia do Rio de Janeiro (1794) -,
n�o h� como negar que A longa viagem da biblioteca dos reis �, desde
j�, uma importante contribui��o para os estudos da �poca de que trata,
especialmente pelas fontes prim�rias levantadas na Funda��o Biblioteca
Nacional, do Rio de Janeiro, que comp�em o grosso dos manuscritos utilizados,
no Instituto Hist�rico e Geogr�fico Brasileiro e no Arquivo Nacional do Rio de
Janeiro.
Com um texto conciso, de agrad�vel leitura, Lilia
Moritz Schwarcz, professora livre-docente no Departamento de Antropologia da
Universidade de S�o Paulo, e seus colaboradores (Paulo Cesar de Azevedo e
Angela Marques da Costa) mostraram que � poss�vel (re)escrever a Hist�ria
atrav�s da hist�ria dos livros.