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Livro: A ditadura envergonhada e A ditadura escancarada
Autor: Elio Gaspari
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2002
N�mero de p�ginas: 936 em dois volumes
Os por�es da ditadura militar brasileira

Adelto Gon�alves

� dif�cil de acreditar, mas invadir Portugal, com a utiliza��o de arsenais secretos, fez parte de planos, em agosto de 1975, do Servi�o Nacional de Informa��es (SNI), o bra�o secreto do regime militar que infelicitou o Brasil de 1964 a 1985 e que, �quela altura, n�o estava nada satisfeito com os destinos da Revolu��o dos Cravos. Essa e outras disparatadas atividades do SNI est�o documentadas em As ilus�es armadas: A ditadura envergonhada e A ditadura escancarada, do jornalista Elio Gaspari, obra que inicialmente sai em dois volumes que abarcam principalmente o per�odo de 1964 a 1974.
Mais dois volumes, j� escritos, est�o anunciados e dever�o abranger o per�odo at� 1977. Segundo informa��es da editora, um quinto volume est� para ser escrito, chegando at� mar�o de 1979, com a posse de Jo�o Baptista Figueiredo, o folcl�rico general-presidente que dizia gostar mais do cheiro de cavalo do que do cheiro de povo, mas que, bem ou mal, promoveu a abertura pol�tica e saiu pela porta dos fundos do Pal�cio do Alvorada, sem passar a faixa presidencial ao seu sucessor. Talvez porque Figueiredo tenha sido o mais apagado dos generais-presidentes, Gaspari est� disposto a fazer a vontade desse militar que, um dia, pediu ao povo que o esquecesse. De seu per�odo (1979-1985), n�o pretende escrever uma linha.
N�o � preciso ler os tr�s volumes que vir�o para concluir que Gaspari ergueu o mais extenso painel dos anos mais tormentosos da hist�ria contempor�nea brasileira. Trata-se de uma obra-prima da reportagem de reconstitui��o hist�rica. � o resultado de consulta a mais de quinhentos livros de sua biblioteca particular que re�ne mais de seis mil t�tulos num apartamento de sala e tr�s quartos que comprou em S�o Paulo exatamente para esse fim.
� nesse apartamento, at� certo ponto modesto, que guarda o tesouro mais valioso que lhe permitiu escrever As ilus�es armadas: o arquivo que recebeu do general Golbery do Couto e Silva, o criador do SNI, com mais de cinco mil pap�is, acompanhado pelo Di�rio de Heitor Ferreira de Aquino, c�pias de pap�is produzidos pelo ex-secret�rio particular de Golbery e do ex-presidente Ernesto Geisel.
A ditadura envergonhada mostra como o regime militar come�ou em mar�o em 1964 como uma patuscada. O general Olympio Mour�o Filho, comandante da 4� Regi�o Militar e da 4 � Divis�o de Infantaria, na imin�ncia de ser atingido pela reforma compuls�ria, depois de algumas conspira��es que melhor ficariam num filme de pastel�o tipo Os Tr�s Patetas, decidiu descer, sem avisar a ningu�m, com suas tropas, de Juiz de Fora em dire��o ao Rio de Janeiro. Com um tropa pequena e bem treinada, sentia-se capaz de tomar de assalto o pr�dio do Minist�rio da Guerra em menos de 24 horas. O resto, acreditava, cairia de podre.
Embora viesse a se autodefinir como uma �vaca fardada� ao tentar explicar a sua incapacidade para entender os meandros da pol�tica, o velho militar tinha raz�o. O governo civil de Jo�o Goulart, depois de muito ziguezaguear entre a direita e a esquerda, seria incapaz de articular um m�nimo de rea��o.
Uma rea��o que, se viesse, � preciso que se diga, talvez encontrasse pela frente a maior m�quina de guerra da Hist�ria: o governo norte-americano estava pronto para se meter abertamente na crise brasileira, caso estalasse uma guerra civil. Na Biblioteca Lyndon Johnson, no Texas, documentos de uma chamada Opera��o Brother Sam mostram que, em mar�o de 1964, o porta-avi�es Forrestal descia o Atl�ntico com avi�es-tanques e suprimento de combust�vel e armas para apoiar os revoltosos contra o governo democraticamente eleito.
Para recuperar esta e outras centenas de hist�rias, Elio Gaspari, um dos mais importantes jornalistas brasileiros de sua gera��o, levou mais de dezoito anos. Come�ou a escrever estes livros em 1984. Temia-se que n�o conseguisse nunca levar a cabo esta miss�o tal o seu zelo profissional. E, de fato, s� o conseguiu porque a editora Companhia das Letras, para auxili�-lo, montou uma for�a-tarefa, for�ando-o a buscar uma conclus�o. Se fosse deixado s�, talvez nunca chegasse ao fim desse emaranhado de informa��es. At� porque, como deixa intuir, parecia sentir prazer em remoer essas hist�rias.
� dif�cil destacar algum trecho destes dois livros entre tantos dignos de admira��o. Mas n�o h� como deixar de ressaltar os cap�tulos que tratam da tortura, at� porque este foi o mais abomin�vel flagelo de um tempo que n�o deixou nenhuma boa lembran�a. �Os oficiais-generais que ordenaram, estimularam e defenderam a tortura levaram as For�as Armadas brasileiras ao maior desastre de sua hist�ria�, diz Gaspari na abertura de A ditadura escancarada. A tortura tornou-se mat�ria de ensino e pr�tica rotineira dentro da m�quina de repress�o pol�tica da ditadura, defendida por todos os generais-presidentes, mesmo anos depois que j� haviam deixado o cargo.
O autor lembra, por�m, que, no caso brasileiro, faltou ao surto terrorista a dimens�o que lhe foi atribu�da pelo regime militar, destacando que s� no segundo semestre de 1970 explodiram 140 bombas nos Estados Unidos, n�mero superior, de longe, a todas as explos�es ocorridas no Brasil. E que, na Irlanda, em 1971, detonaram-se mais de mil bombas e as for�as de seguran�a perderam 59 homens em combate. Nem por isso nesses dois pa�ses a tortura foi transformada em pol�tica de Estado como no Brasil.
Ao descer ao inferno dos por�es da ditadura, Gaspari faz uma an�lise profunda da degenera��o moral a que chegou o Ex�rcito brasileiro. Como exemplo, lembra a tarde do dia 8 de outubro de 1969, quando, na 1� Companhia da Pol�cia do Ex�rcito, um tenente deu uma aula pr�tica de tortura para uma plat�ia de oficiais do Ex�rcito, Aeron�utica e Marinha. Utilizando dez presos como cobaias, o oficial ensinou como aplicar choques el�tricos, palmat�ria e pau-de-arara.
Outros cap�tulos igualmente primorosos podem ser destacados, como o que narra a persegui��o e a morte de Carlos Lamarca, ex-capit�o do Ex�rcito que largou tudo para dedicar-se � guerrilha, ou ainda a parte que relata a cilada que possibilitou o assassinato a tiros de metralhadora do l�der terrorista e ex-deputado federal Carlos Marighela pelas for�as da repress�o comandada pelo delegado S�rgio Paranhos Fleury. Ali�s, ao comentar os efeitos da promiscuidade entre militares e policiais civis torturadores, Gaspari produz uma frase lapidar: �O delegado S�rgio Fleury n�o ficou parecido com um oficial do Ex�rcito. Eram os oficiais do Ex�rcito que ficavam parecidos com ele�.
Enfim, esta � obra que nasce destinada � perenidade. Um livro que os oficiais do Ex�rcito brasileiro sempre dever�o ler antes de sonhar com novas aventuras para a ruptura do ordem democr�tica. O pior dos regimes civis ser� sempre superior ao qualquer regime militar.
NetHist�ria 1�/02/2003