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dif�cil de acreditar, mas invadir Portugal, com a utiliza��o de arsenais
secretos, fez parte de planos, em agosto de 1975, do Servi�o Nacional de
Informa��es (SNI), o bra�o secreto do regime militar que infelicitou o Brasil
de 1964 a 1985 e que, �quela altura, n�o estava nada satisfeito com os
destinos da Revolu��o dos Cravos. Essa e outras disparatadas atividades do SNI
est�o documentadas em As ilus�es armadas: A ditadura envergonhada e A ditadura
escancarada, do jornalista Elio Gaspari, obra que inicialmente sai em dois
volumes que abarcam principalmente o per�odo de 1964 a 1974.
Mais
dois volumes, j� escritos, est�o anunciados e dever�o abranger o per�odo
at� 1977. Segundo informa��es da editora, um quinto volume est� para ser
escrito, chegando at� mar�o de 1979, com a posse de Jo�o Baptista Figueiredo,
o folcl�rico general-presidente que dizia gostar mais do cheiro de cavalo do
que do cheiro de povo, mas que, bem ou mal, promoveu a abertura pol�tica e saiu
pela porta dos fundos do Pal�cio do Alvorada, sem passar a faixa presidencial
ao seu sucessor. Talvez porque Figueiredo tenha sido o mais apagado dos
generais-presidentes, Gaspari est� disposto a fazer a vontade desse militar
que, um dia, pediu ao povo que o esquecesse. De seu per�odo (1979-1985), n�o
pretende escrever uma linha.
N�o
� preciso ler os tr�s volumes que vir�o para concluir que Gaspari ergueu o
mais extenso painel dos anos mais tormentosos da hist�ria contempor�nea
brasileira. Trata-se de uma obra-prima da reportagem de reconstitui��o
hist�rica. � o resultado de consulta a mais de quinhentos livros de sua
biblioteca particular que re�ne mais de seis mil t�tulos num apartamento de
sala e tr�s quartos que comprou em S�o Paulo exatamente para esse fim.
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nesse apartamento, at� certo ponto modesto, que guarda o tesouro mais valioso
que lhe permitiu escrever As ilus�es armadas: o arquivo que recebeu do
general Golbery do Couto e Silva, o criador do SNI, com mais de cinco mil
pap�is, acompanhado pelo Di�rio de Heitor Ferreira de Aquino, c�pias
de pap�is produzidos pelo ex-secret�rio particular de Golbery e do
ex-presidente Ernesto Geisel.
A
ditadura envergonhada mostra como o regime militar come�ou em mar�o em
1964 como uma patuscada. O general Olympio Mour�o Filho, comandante da 4�
Regi�o Militar e da 4 � Divis�o de Infantaria, na imin�ncia de ser atingido
pela reforma compuls�ria, depois de algumas conspira��es que melhor ficariam
num filme de pastel�o tipo Os Tr�s Patetas, decidiu descer, sem avisar
a ningu�m, com suas tropas, de Juiz de Fora em dire��o ao Rio de Janeiro. Com
um tropa pequena e bem treinada, sentia-se capaz de tomar de assalto o pr�dio
do Minist�rio da Guerra em menos de 24 horas. O resto, acreditava, cairia de
podre.
Embora
viesse a se autodefinir como uma �vaca fardada� ao tentar explicar a sua
incapacidade para entender os meandros da pol�tica, o velho militar tinha
raz�o. O governo civil de Jo�o Goulart, depois de muito ziguezaguear entre a
direita e a esquerda, seria incapaz de articular um m�nimo de rea��o.
Uma
rea��o que, se viesse, � preciso que se diga, talvez encontrasse pela frente
a maior m�quina de guerra da Hist�ria: o governo norte-americano estava pronto
para se meter abertamente na crise brasileira, caso estalasse uma guerra civil.
Na Biblioteca Lyndon Johnson, no Texas, documentos de uma chamada Opera��o Brother
Sam mostram que, em mar�o de 1964, o porta-avi�es Forrestal descia
o Atl�ntico com avi�es-tanques e suprimento de combust�vel e armas para
apoiar os revoltosos contra o governo democraticamente eleito.
Para
recuperar esta e outras centenas de hist�rias, Elio Gaspari, um dos mais
importantes jornalistas brasileiros de sua gera��o, levou mais de dezoito
anos. Come�ou a escrever estes livros em 1984. Temia-se que n�o conseguisse
nunca levar a cabo esta miss�o tal o seu zelo profissional. E, de fato, s� o
conseguiu porque a editora Companhia das Letras, para auxili�-lo, montou uma
for�a-tarefa, for�ando-o a buscar uma conclus�o. Se fosse deixado s�, talvez
nunca chegasse ao fim desse emaranhado de informa��es. At� porque, como deixa
intuir, parecia sentir prazer em remoer essas hist�rias.
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dif�cil destacar algum trecho destes dois livros entre tantos dignos de
admira��o. Mas n�o h� como deixar de ressaltar os cap�tulos que tratam da
tortura, at� porque este foi o mais abomin�vel flagelo de um tempo que n�o
deixou nenhuma boa lembran�a. �Os oficiais-generais que ordenaram,
estimularam e defenderam a tortura levaram as For�as Armadas brasileiras ao
maior desastre de sua hist�ria�, diz Gaspari na abertura de A ditadura escancarada.
A tortura tornou-se mat�ria de ensino e pr�tica rotineira dentro da m�quina
de repress�o pol�tica da ditadura, defendida por todos os generais-presidentes,
mesmo anos depois que j� haviam deixado o cargo.
O
autor lembra, por�m, que, no caso brasileiro, faltou ao surto terrorista a
dimens�o que lhe foi atribu�da pelo regime militar, destacando que s� no
segundo semestre de 1970 explodiram 140 bombas nos Estados Unidos, n�mero
superior, de longe, a todas as explos�es ocorridas no Brasil. E que, na
Irlanda, em 1971, detonaram-se mais de mil bombas e as for�as de seguran�a
perderam 59 homens em combate. Nem por isso nesses dois pa�ses a tortura foi
transformada em pol�tica de Estado como no Brasil.
Ao
descer ao inferno dos por�es da ditadura, Gaspari faz uma an�lise profunda da
degenera��o moral a que chegou o Ex�rcito brasileiro. Como exemplo, lembra a
tarde do dia 8 de outubro de 1969, quando, na 1� Companhia da Pol�cia do
Ex�rcito, um tenente deu uma aula pr�tica de tortura para uma plat�ia de
oficiais do Ex�rcito, Aeron�utica e Marinha. Utilizando dez presos como
cobaias, o oficial ensinou como aplicar choques el�tricos, palmat�ria e
pau-de-arara.
Outros
cap�tulos igualmente primorosos podem ser destacados, como o que narra a
persegui��o e a morte de Carlos Lamarca, ex-capit�o do Ex�rcito que largou
tudo para dedicar-se � guerrilha, ou ainda a parte que relata a cilada que
possibilitou o assassinato a tiros de metralhadora do l�der terrorista e
ex-deputado federal Carlos Marighela pelas for�as da repress�o comandada pelo
delegado S�rgio Paranhos Fleury. Ali�s, ao comentar os efeitos da
promiscuidade entre militares e policiais civis torturadores, Gaspari produz uma
frase lapidar: �O delegado S�rgio Fleury n�o ficou parecido com um oficial
do Ex�rcito. Eram os oficiais do Ex�rcito que ficavam parecidos com ele�.
Enfim,
esta � obra que nasce destinada � perenidade. Um livro que os oficiais do
Ex�rcito brasileiro sempre dever�o ler antes de sonhar com novas aventuras
para a ruptura do ordem democr�tica. O pior dos regimes civis ser� sempre
superior ao qualquer regime militar.