O documento abaixo faz parte do livro de Euclides da Cunha,
"Os Sert�es", publicado em 1902. Euclides da Cunha participou da Guerra de Canudos como
correspondente do jornal "Estado de S�o Paulo" e escreveu um livro relatando
os horrores dessa campanha militar.
"Canudos n�o se rendeu
Fechemos este livro.
Canudos n�o se rendeu. Exemplo �nico em toda a hist�ria,
resistiu at� ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precis�o integral do
termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando ca�ram os seus �ltimos defensores, que todos
morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma crian�a, na frente dos
quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.
Forremo-nos � tarefa de descrever os seus �ltimos momentos.
Nem poder�amos faz�-lo. Esta p�gina, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e
tr�gica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.
Vimos como quem vinga uma montanha alt�ssima. No alto, a par de
uma perspectiva maior, a vertigem. . .
Ademais, n�o desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de
pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos pr�prios
lares, abra�adas aos filhos pequeninos...
E de que modo comentar�amos, com a s� fragilidade da palavra
humana, o fato singular de n�o aparecerem mais, desde a manh� de 3, os prisioneiros
v�lidos colhidos na v�spera, e entre eles aquele Ant�nio Beatinho, que se nos
entregara, confiante e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase
obscura da nossa Hist�ria ?
Caiu
o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200,
cuidadosamente contadas.
O cad�ver de Conselheiro
Antes, no amanhecer daquele dia, comiss�o adrede escolhida
descobrira o cad�ver de Ant�nio Conselheiro.
Jazia num dos casebres anexos � latada, e foi encontrado gra�as
� indica��o de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste
sud�rio de um len�ol imundo, em que m�os piedosas haviam desparzido algumas flores
murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de t�bua, o corpo do "famigerado e
b�rbaro" agitador. Estava hediondo. Envolto no velho h�bito azul de brim americano,
m�os cruzadas ao peito, rosto tumefato, e esqu�lido, olhos fundos cheios de terra
mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida.
Desenterraram-no cuidadosamente. D�diva preciosa �nico
pr�mio, �nicos despojos opimos de tal guerra ! , faziam-se mister os m�ximos
resguardos para que se n�o desarticulasse ou deformasse, reduzindo-se a uma massa
angulhenta de tecidos decompostos.
Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua
identidade: importava que o pa�s se convencesse bem de que estava, afinal, extinto aquele
terribil�ssimo antagonista.
Restitu�ram-no � cova. Pensaram, por�m, depois, em
guardar a sua cabe�a tantas vezes maldita e, como fora malbaratar o tempo
exumando-o de novo, uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude,
cortou-lha; e a
face horrenda, empastada de escaras e de s�nie, apareceu ainda uma vez ante aqueles
triunfadores...
Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multid�es em
festa, aquele cr�nio. Que a ci�ncia dissesse a �ltima palavra. Ali estavam, no relevo
de circunvolu��es expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura..."
Bibliografia
CUNHA, Euclides da. Os Sert�es. 27.ed.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1968. p.458-459.