O Santo Of�cio da Inquisi��o
 

Rog�rio Rezende Pinto
 


1. Contexto hist�rico e mentalidade

"Bem que os seus crimes foram exagerados."
Flaubert (1821-1880).


O tema Inquisi��o � algo que arrepia muita gente, s� em ouvir falar; causa horror em outras, devido ser entendido como sin�nimo de atrocidade (des)humana. Entretanto, em que sentido ou em que contexto surgiu ou se permitiu que surgisse a pr�tica oficial da tortura religiosa? Para poder haver uma maior fidelidade na compreens�o do tema, � necess�rio que se apreenda algo sobre a �poca que se vai abordar; sobre a mentalidade e sobre o contexto hist�rico que se desenvolvia.


Inserida no contexto hist�rico, a Inquisi��o e seu aparato jur�dico - O Tribunal do Santo Of�cio - devem ser entendidos como fen�meno que se articulava com o surgimento do Estado nacional. A Inquisi��o insere-se a partir do momento em que a crise dos valores medievais apresentou-se tamb�m como uma crise da hierarquia feudal (NOVAIS, 1997, p.34-35). O Estado necessitava controlar a Igreja (ou as Igrejas), ou seja, o poder secular buscou apossar-se e nacionalizar o poder temporal. O rei, ou o que sua figura representava, tinha premissa de ampla autonomia em rela��o ao papado. Contraditoriamente, este mesmo rei buscava na Igreja romana a sua legitima��o no poder. A contradi��o desse momento medieval foi o rei querer superar a influ�ncia da Igreja em seu territ�rio ao mesmo tempo em que n�o podia admitir o aparecimento de seitas, ou heresias religiosas, que amea�assem a quebra da unidade interior (ou a busca da nacionalidade). Isso pode explicar casos como o da Espanha que teve no Tribunal do Santo Of�cio um instrumento para a manuten��o de uma unidade (ao menos) religiosa de sua popula��o - mesmo que essa unidade religiosa tenha sido fundada sob os pilares do medo e do pavor.


O Estado moderno pode ser entendido como parte da crise e da solu��o que transcorreu ao longo do per�odo cujo marco fica sendo o s�culo XIV. � o Estado moderno que faculta a expans�o e consolida��o do capitalismo comercial (mercantilismo) e a incorpora��o das Am�ricas ao eixo pol�tico-hist�rico-social-econ�mico-cultural europeu. A organiza��o do Estado deu-se tamb�m por conta das necessidades jur�dicas e absolutistas, da persegui��o �s feiticeiras e do exorcismo dos dem�nios. Esse quadro foi positivo � Igreja, � Justi�a, � Religi�o e ao Estado na medida da constru��o da figura de um novo homem. Um homem submetido � domina��o pol�tica e ideol�gica do Estado absolutista e da Igreja onipresente que ansiavam em vigiar as popula��es atrav�s da unifica��o das penalidades e comportamentos a serem impostos, seguidos e aceitos (SOUZA, 1986, p.281-282).(1) Assim, do mesmo modo como as feiticeiras foram enquadradas em delitos e contraven��es, legislou-se contra a vadiagem, a mendic�ncia e ao pauperismo (frutos da crise e desmoronamento do feudalismo). � dentro desse contexto hist�rico mais amplo que deve ser entendido o desencadeamento da Inquisi��o. A constru��o e fortalecimento do Estado centralizado, a necessidade de cria��o da Inquisi��o e do Tribunal do Santo Of�cio na transi��o da Idade M�dia para a Idade Moderna e a conseq�ente persegui��o e ca�a �s bruxas foram manifesta��es contempor�neas e, estreitamente, inter-relacionadas. Toda essa situa��o e suas contradi��es levariam �s duas Reformas religiosas: a protestante e a cat�lica. Por outro lado, a pr�pria Reforma religiosa foi explicada, j� na �poca, tamb�m, pela �tica da disputa pelo "poder material" entre Igreja e Estado, como se pode atestar pelo texto a seguir:


E, como a maior parte das riquezas estava nas m�os dos cl�rigos e havendo muito rancor entre os estados espiritual e temporal, [...] come�ou o cisma na Igreja Cat�lica. [...] E isso foi o que aconteceu a um grande n�mero de pa�ses que se rebelaram contra a Igreja Cat�lica e n�o lhe devem mais obedi�ncia em coisa alguma [...]" (FORESTI apud GINZBURG, 1998, p.159)


Essa situa��o que gerou a perda da unidade religiosa era de claro conhecimento dos mais cultos e fez com que urgisse, por parte dos cat�licos, a �nsia de impedir novas divis�es na Igreja. A Inquisi��o teve, assim, o papel de resguardar a unidade religiosa do cristianismo romano. No campo religioso, os acontecimentos come�aram, na Idade Moderna, a girar em torno da moldagem cultural das elites, isso tanto da parte da Igreja Reformada como da parte do Absolutismo. A instala��o dos Tribunais do Santo Of�cio era fruto da tentativa de se homogeneizar o grosso da popula��o, eliminar a cultura religiosa de fundo folcl�rico e pag�o e impor os valores culturais da elite dominante.


Em outubro de 1555 tr�s mulheres foram queimadas como bruxas na regi�o dos pa�ses germ�nicos. Ao fundo � poss�vel se ver um quarto elemento que estava para ser decapitado. No interior da constru��o, mais duas bruxas estavam sendo queimadas. No campo superior esquerdo, o imagin�rio medieval representou a figura do dem�nio � espreita da almas das bruxas.


Deve-se, ainda, considerar que todo o universo medieval estruturava seus valores em um mundo concebido a partir de uma estrutura dual. O que se quer dizer � que para a sociedade medieval s� havia dois caminhos a serem seguidos: o c�u e o inferno, o senhor e o servo, a morte e a vida, a salva��o e a perdi��o, ser crist�o ou n�o , estar na Igreja ou fora dela (se � que isso fosse poss�vel), a exist�ncia do lado bom e do lado mal, a gra�a e a desgra�a, a virtude e o pecado, Deus e o Diabo, etc., etc. N�o havia uma terceira possibilidade para a concep��o de mundo da �poca. A crise dos valores medievais vem apresentar � sociedade daquele per�odo outros caminhos, outras variantes, impensadas at� ent�o. S�o essas variantes que entrariam em choque com as concep��es da �poca e acabariam por estimular a sua rea��o.


O s�culo XI � um marco que assinala o in�cio do desmonte da estrutura feudal europ�ia. A atividade comercial impulsionou o crescimento das cidades. Essas passaram, ent�o, a ser os novos centros de cria��o e difus�o de id�ias e cultura, n�o mais o meio rural como ocorria desde o fim da Antig�idade. A amplia��o das atividades mercantis e o incremento das pr�ticas manufatureiras "coincidiam" com a necessidade de autonomia do processo educacional. A efus�o comercial que se iniciou ent�o, exigia dos mercadores cada vez mais contatos com outros povos e costumes diversos dos seus. Esse contato foi ben�fico para a amplia��o dos horizontes pessoais e mercantis, mas foi, mortalmente, fatal para as tradi��es e conven��es de uma sociedade que procurava manter-se herm�tica e imut�vel. O resultado foi a necessidade de que tamb�m a educa��o tivesse que ser libertada do julgo clerical (HAUSER, 1994, p.204-205). Essa independ�ncia do saber prejudicaria imensamente o dom�nio da Igreja no controle ideol�gico da sociedade. A evolu��o dos questionamentos levaria ao Renascimento cultural e cient�fico e a Reforma religiosa de Martinho Lutero (1483-1546). A rea��o a essa situa��o foi a montagem de um aparelho repressor de car�ter pol�tico, religioso e ideol�gico cristalizado na atua��o do Tribunal do Santo Of�cio.


Nunca � demais lembrar que o fim da Idade M�dia e os in�cios da Idade Moderna caracterizam-se, tamb�m, por uma profunda e exacerbada religiosidade, muitas vezes angustiante. O contradit�rio dessa situa��o era o fato de que os crist�os tinham um perfeito desconhecimento dos dogmas clericais. Ao participarem da liturgia crist�, sequer compreendiam o sentido de uma missa e mesmo dos sacramentos (SOUZA, 1986, p.90-91). Autores sobre o tema chamam a aten��o, destacando que no s�culo XVII era poss�vel perceber duas religi�es distintas no seio da cristandade: uma dos te�logos e outra dos crentes (SOUZA, 1986, p.88). Al�m disso, n�o se pode esquecer que na transi��o entre a Baixa Idade M�dia e a Idade Moderna, os homens, de maneira geral, estavam a acreditar, ainda no s�culo XIV, conforme ressalta Laura de Mello e Souza (1986, p.24-25):


[...] na exist�ncia do Equador, dos tr�picos, de cinco zonas clim�ticas, tr�s continentes, tr�s mares, doze ventos. A Europa setentrional e o Atl�ntico j� se confundiam com o imagin�rio, sendo descritos quase como fic��o: na primeira, os hiperb�reos viviam nas trevas; no segundo, havia uma quantidade de ilhas misteriosas. Sobre a �frica, falava-se do Magreb e do Egito, desenvolviam-se hip�teses sobre as fontes do Nilo, que seriam na �ndia - esta, ligada � �frica, fechava o �ndico - ou o curso superior do N�ger. A �sia, grande p�lo de fasc�nio para o imagin�rio europeu, encerrava o Para�so Terrestre, vedado por altas montanhas, por uma cortina de ferro e por hordas de animais monstruosos. Ao Norte, ficava o lend�rio pa�s de Gog e Magog, composto das tribos israelitas expulsas por Alexandre. No centro, estendia-se o reino do Preste Jo�o, descendente dos reis magos e inimigo ferrenho dos mu�ulmanos.


As pessoas - independente da classe social: burgueses, nobres, servos, cl�rigos, etc. - habituadas � cren�a numa magia existente no mundo, n�o conseguiam distinguir o real do imagin�rio, o poss�vel do imposs�vel, o mito do racional. N�o se concebia uma separa��o entre o cotidiano e um mundo do fant�stico, do extraordin�rio. Tudo era poss�vel, acreditava-se em tudo, acreditava-se nas magias para o bem e para o mal; era f�cil acreditar em bruxos; f�cil temer a qualquer um que discordasse e propagasse algo fora do padr�o comum de aceita��o do mundo e da religi�o. � por isso que Laura de Mello e Souza (1986, p.284) chegou a firmar que: "O dom�nio privilegiado de sat� foram pois os Tempos Modernos, e n�o a Idade M�dia". Ainda, segundo ela, at� o s�culo XV a fun��o do Dem�nio, quando convocado, era a de servir ao homem, variando a� o grau de sujei��o do Dem�nio ao seu senhor, o homem. Daquele s�culo em diante a situa��o inverteu-se e a mentalidade popular passou a conceber a situa��o em que o Dem�nio deixou a situa��o de servi�al para tornar-se senhor do homem (SOUZA, 1986, p.143). Os dois pr�ximos s�culos, mais exatamente no per�odo que vai de 1530 a 1630, assistiram o apogeu da ca�a as bruxas. Sobre elas pesou a responsabilidade por invocarem o maligno. (2)


Particularmente, com rela��o �s Am�ricas, a conquista do Novo Mundo assinala uma caracter�stica da bifrontalidade do expansionismo europeu, ou seja, a submiss�o e incorpora��o de novas terras e culturas. Assim, novas almas eram somadas, ampliando o poder temporal da Igreja. Ao mesmo tempo, novos s�ditos eram enquadrados no poder temporal dos Estados ib�ricos.


Em rela��o � vis�o particular sobre as �ndias orientais, a mentalidade europ�ia concebia e acreditava ser uma terra onde homens e animais seriam monstruosos e "Do ponto de vista sexual, seria a fascina��o pela diferen�a: canibalismo, nudismo, liberdade sexual, erotismo, poligamia incesto" (SOUZA, 1986, p.25-26) Deve-se frisar que essa vis�o depois ser� transferida para as Am�ricas (em especial a espanhola e lusitana) onde o europeu passa a ver aqui ora como o Para�so, ora como o Inferno e, muitas vezes, como o Purgat�rio. Em outras palavras, o imagin�rio europeu era f�rtil em cria��es fabulosas, em possibilidades irrestritas. O fant�stico podia tornar-se presente. Assim, n�o era imposs�vel, para muitos, em se acreditar haver bruxas/bruxos em sua comunidade. O mundo medievo era impregnado de magia. Uma magia natural. Uma magia que era real para um mundo campon�s de uma Europa pr�-industrial.


O objetivo principal da Inquisi��o foi o de combater todas as pr�ticas e pensar religiosos que surgiam em meio ao povo medievo, fugindo ao controle da elite pol�tica e religiosa. Segundo Carlo Ginzburg (1998),(3) a Inquisi��o que tomou novo sopro com a Contra-reforma assinalou um per�odo de busca de controle e extin��o da cultura popular(4) e da marginaliza��o das minorias e grupos dissidentes. A Igreja romana procurou extirpar da estrutura do cristianismo todos os tra�os do folclore e do paganismo que ainda persistiam no seio da cultura medieval dos s�culos XV e XVI. Promoveu um combate tanto contra a cultura erudita considerada velha como contra a cultura erudita considerada nova.(5) Nem mesmo a cultura popular (GINZBURG, 1998, p.115) foi deixada de fora dessa situa��o. A Igreja romana, ao combater todos esses pontos e, ainda, os reformistas protestantes, pretendia procurar manter o monop�lio da cultura que lhe era ideal. Mas o mundo mudava e nem isso conseguiu. O aperfei�oamento da imprensa (a partir de 1438 por Johannes Gutemberg) veio a eliminar a cultura como privil�gio s� de alguns poucos.(6) O mundo tornava-se mais amplo. Mais amplo ainda tornou-se com o advento das navega��es, descobrimentos e dos avan�os cient�ficos e econ�micos que as sociedades da �poca vivenciaram. Assim os inquisidores do Santo Of�cio tiveram "muito trabalho" para perseguir e combater a todos os hereges e heresias que surgiam em todos os lugares e a toda hora.



Notas

(1) Segundo esta autora "At� o s�culo XVIII, seria crescente a dureza dos Estados europeus para com a feiti�aria, o que torna mais uma vez transparente a rela��o entre absolutismo e obsess�o demon�aca". (SOUZA, 1986, p.284.)

(2) Naquela �poca atribu�a-se as bruxas(os) o poder de provocar males org�nicos aos humanos; n�o males espirituais.

(3) Cf. a p�gina 33 e seguinte, no pref�cio de sua obra O queijo e os vermes.

(4) Cultura popular neste caso n�o pode e n�o deve ser confundida com cultura de massa, sobre pena de se cometer um anacronismo.

(5) O que se quer dizer � que se combatia contra os valores da Antig�idade cl�ssica e os valores nascentes do Humanismo e do Renascimento.

(6) Em sua obra Hist�ria social da arte e da literatura, Arnoldo Hauser atribui importante papel na expans�o do mundo liter�rio aos humanistas; confira: "[...] As obras da literatura medieval ainda se destinavam apenas a um c�rculo muito limitado que consistia, usualmente, em pessoas j� muito conhecidas dos escritores; os humanistas s�o os primeiros autores a dirigirem-se a um p�blico mais vasto e, em certa medida, desconhecido. Algo com as caracter�sticas de um mercado liter�rio livre e de uma opini�o p�blica condicionada e influenciada pela literatura s� passou a existir a partir deles.[...]", (HAUSER, 1994. p. 350).





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