�A justificativa para uma universidade � que ela preserva a conex�o entre o conhecimento e gosto pela vida, unindo jovens e velhos na causa imaginativa do ensino. A universidade transmite informa��es, mas transmite-as com exaltada imagina��o. Pelo menos, essa � a fun��o que deveria desempenhar para a sociedade. A Universidade que falha nesse ponto n�o tem raz�o de existir. Essa atmosfera de excita��o que nasce dos estudos imaginativos transforma o conhecimento. A imagina��o n�o deve ficar separada dos fatos; � um meio de ilumin�-los. Possibilita ao homem elaborar uma vis�o intelectual de um novo mundo e preserva o gosto pela vida ao sugerir finalidades satisfat�rias. Ou a Universidade � imaginativa ou n�o � nada � pelo menos nada de �til.� Alfred N. Whitehead
A Universidade � um dos maiores legados do medievo, que ainda nos contempla em sua exist�ncia com todo o seu brilho e esplendor por criar opini�o, por formar o conhecimento e aqueles que o criam. Surgida em meados do s�culo XIII, este centro de excel�ncia � a verdadeira mola que impulsiona a cria��o das ci�ncias modernas.
Inicialmente, muito mais te�rica do que pr�tica, prezava por doutrinar os grandes pensadores de um mundo europeu, predominantemente, crist�o. A Universidade n�o buscou a princ�pio a especializa��o, a especificidade, caracter�stica esta da Universidade moderna, por�m, buscou sim, uma forma��o ampla onde seus acad�micos estudavam filosofia, astronomia, teologia, metaf�sica e moral. Ainda que tenha surgido nos s�culos finais da Idade M�dia, as Universidades tornaram-se a mais elaborada e complexa institui��o capaz de representar a civiliza��o medieval no campo educativo (LE GOFF; SCHIMTT, 2002).
O per�odo englobado entre os s�culos XIII e XV � um momento de grandes transforma��es no mundo medieval, o com�rcio aflora no Mediterr�neo e entrela�a suas rotas para o interior da Europa conectando �reas, at� ent�o, incomunic�veis. As Universidades s�o, assim, filhas do renascimento comercial, urbano e intelectual que germina no s�culo XIII, s�o filhas, tamb�m, da nova curiosidade originada pelo contato cada vez maior com o mundo mul�umano e bizantino.
A maior circula��o de moedas, mercadorias, c�mbio, contabilidade, feiras comerciais e rotas de com�rcio resulta no surgimento de uma classe social desvinculada do campo, assentada em uma terra com outra configura��o: a cidade. A cidade e seu crescimento s�o centrais na expans�o das Universidades sendo capaz de abalar, pela sua pr�pria exist�ncia, h�bitos de trabalho, condi��es de vida e at� maneiras de pensar ao aproximar cada vez mais homens de origens e costumes heterog�neos. Na cidade podemos ver o nascimento do homo economicus, inicialmente de forma t�mida e incipiente e, aos poucos, sentimos que o homem come�a a priorizar a mat�ria, locando a salva��o espiritual em um plano secund�rio. Est�o lan�adas as sementes do que no futuro seria conhecido como mercantilismo.
Agora faz-se necess�rio lembrar que o termo Universitas, designa a pr�pria coletividade urbana com as suas liberdades e o seu governo aut�nomo, apenas, posteriormente � que o termo vai definir ou significar um grupo de intelectuais em espec�fico (BONNASSTE, 1981; LE GOFF; SCHIMTT, 2002). Outro aspecto que n�o deve ser esquecido � a evidente intimidade entre a Universidade e a corpora��o de of�cio: ambas defendem o interesse de um grupo, possuem um estatuto de associa��o, assembl�ias gerais e oficiais eleitos e, finalmente, a mesma autonomia. � baseada na estrutura das corpora��es de of�cio que a Universidade se molda. Contudo, apesar de caracter�sticas gerais eminentes em cada centro de ensino, o molde n�o � o mesmo e as diferen�as entre as diversas Universidades s�o consider�veis. � nesse contexto que surge a Universidade de Bolonha.
A Universidade de Bolonha foi fundada no s�culo XI em conseq��ncia do ressurgimento do interesse pelo estudo do Direito, apesar de contempor�nea de Oxford e de Paris, possui tra�os por demais peculiares: seus estudos centrais n�o s�o a Teologia (mais comum entre as institui��es universit�rias), ou a Medicina (como foi o caso da Universidade de Montpellier), mas o Direito Civil e Can�nico. N�o significa afirmar que o Direito era �nico: Medicina (1) , Artes, Filosofia Natural tamb�m constavam em seu curr�culo. Entretanto, foi o Direito que lhe deu a sua fama e no Direito a Universidade concentrou boa parte de seus esfor�os intelectuais, adquirindo assim grande prest�gio. Consta que a fama de Bolonha tornou-se tal que, em meados do s�culo XII, o imperador Frederico I convocou os doutores juristas, membros da Universidade, para emitirem um parecer sobre seus conflitos com as comunidades lombardas.
Se a fama de Bolonha alcan�ou tal prest�gio no Direito, foi devido, principalmente, � obra de dois grandes acad�micos: In�rio, que por volta de 1080 separou o estudo do Direito das outras �reas, e Graciano. A obra de Graciano nos fornece maior margem de discuss�o, pois esse autor distinguiu o Direito Can�nico da Teologia por meio da escrito de um livro voltado ao ensino do Direito Can�nico, contudo para entender como isso foi poss�vel torna-se necess�rio uma reflex�o mais espec�fica.
Como n�o podia ser de outra maneira, a primeira fonte do Direito Can�nico � a pr�pria B�blia, principalmente na sua vers�o latina, chamada "Vulgata", que foi ratificada pelo Conc�lio de Trento e cuja interpreta��o a Igreja Cat�lica se reserva. Isso constitui um dos pontos de conflito com outras igrejas crist�s, que reivindicaram uma maior liberdade de interpreta��o alguns s�culos depois por meio da chamada reforma protestante. A essa fonte b�sica agrega-se a "tradi��o", dita "divina", quando foram registradas as senten�as orais de Jesus Cristo, ou "apost�lica", quando derivou dos ensinamentos dos ap�stolos ou dos seus seguidores imediatos.
As fontes propriamente legislativas s�o os "c�nones" dos conc�lios, n�o apenas dos ecum�nicos, ou universais, como, tamb�m, de alguns particulares, ou regionais que, por falta de maior universalidade, s�o reconhecidos como produ��o legal do cristianismo dos primeiros s�culos. Ainda nos tempos remotos da Igreja, foram compiladas cole��es n�o oficialmente autorizadas, como a Didak� ou Doutrina dos XII Ap�stolos, as Constitui��es Apost�licas e os C�nones Apost�licos. Ao lado dessas cole��es, pretensamente universais, abundam as compila��es regionais: gregas, africanas, it�licas, irlandesas, visig�ticas etc.
Na medida em que o poder pontif�cio se sobrep�e ao dos conc�lios episcopais, aumenta o valor das suas "cartas decretais", geralmente chamadas "decretais" ou "constitui��es". Pela primeira vez, aparecem formando parte de cole��es can�nicas. No s�culo IX j� eram objeto de cole��es espec�ficas atribu�das a Benito Levita ou Isidoro Mercator. Come�ava, assim, a pr�tica de ordenar as normas por assunto, em contraste com as compila��es anteriores, que utilizavam a ordem cronol�gica, fazendo apenas distin��o entre conc�lios e decretais. Assim surgiram cole��es mais organizadas, como as de Regino, abade de Prunn, de Burcardo de Worms, de Ivo de Chartres, de Alger de Lieja etc.
Graciano, monje de S�o F�lix, morador da cidade de Bolonha, foi o respons�vel pela primeira reuni�o organizada dessas compila��es que possu�a o objetivo de ensinar os estudantes universit�rios. Essa cole��o, tradicionalmente conhecida como Decreto de Graciano, passou a constituir mat�ria de estudo em todas as universidades e se transformou em ponto de refer�ncia obrigat�rio do Direito Can�nico. N�o foi compilada como c�digo legislativo, mas como uma cole��o privada, de inten��o exclusivamente did�tica. Entretanto, o predicamento adquirido (ligado ao surgimento da pr�pria Universidade de Bolonha) foi tanto que as cole��es posteriores passaram a ser chamadas de "extravagantes". Cinco dessas cole��es conservam singular import�ncia, principalmente a terceira, encaminhada � Universidade de Bolonha pelo papa Inoc�ncio III, o que a constitui, pela primeira vez, em c�digo oficial da Igreja. Similar sorte teve a quinta, enviada a Tancredo, professor da mesma Universidade, pelo papa Hon�rio III.
As peculiaridades da Universidade de Bolonha n�o acabam em seu destaque no estudo da jurisprud�ncia laica e eclesi�stica. Bolonha n�o foi, como a Universidade de Paris, uma federa��o de escolas medievais, mas sim, uma organiza��o s� de estudantes. Os professores eram escolhidos pelos alunos e tornavam-se respons�veis, perante esses mesmos alunos, pelo ensino do conte�do que ministravam em suas aulas. O reitor era um aluno eleito pelos alunos para reger a Universidade no per�odo de um ano.
Dividida em quatro faculdades (Direito, Artes, Medicina e Teologia), como normalmente o faziam os outros centros universit�rios, Bolonha ultrapassa esta divis�o quadripartida ao criar em sua estrutura as Na��es e os Col�gios. Os primeiros agrupamentos de estudantes ou �na��es� est�o documentados desde o final do s�culo XII. A Comuna de Bolonha (formada essencialmente de cl�rigos) tentou em v�o frear o surgimento dessas associa��es aut�nomas. Apoiadas pelo papa, as diversas na��es acabaram por se reunir, no in�cio do s�culo XIII, em duas �Universidades�: a dos italianos e a dos estrangeiros. Apesar de inicialmente possuir um n�mero restrito de alunos (cerca de 400), no s�culo XV, Bolonha j� possui em suas instala��es quase 2 mil estudantes, n�mero encontrado em diversas universidades de nosso tempo.
A Universidade de Bolonha era um centro de efervesc�ncia cultural universit�ria italiana liderada e administrada por estudantes, onde os mestres possu�am a responsabilidade, vinculada por meio de um pacto honor�fico, de ministrar suas aulas de forma satisfat�ria. O esplendor do conhecimento permeava este centro de excel�ncia medieval na leitura atenta das �autoridades�. Bolonha era um s�mbolo das modifica��es que se configuram durante o feudalismo, juntamente de outras universidades, era uma das respons�veis pela �gide do Renascimento.
Ao fazer um r�pido paralelo � percept�vel que o exemplo deixado a n�s por Bolonha deve ser seguido pelas Universidades contempor�neas, pois sua ess�ncia pareceu manter-se viva mesmo com o desmantelamento do mundo feudal: elei��es diretas para reitor na garantia de um centro de ensino aut�nomo. A democracia plena era soberana em Bolonha, ent�o, voltemos a ela, para se poder direcionar as universidades brasileiras para o cumprimento de seu papel social e acad�mico.
Notas
(1) Tornou-se tamb�m refer�ncia a partir de 1218, quando recebeu do papa Hon�rio III uma maior autonomia.
Bibliografia
LE GOFF, Jacques; SCHIMTT, Jean Claude (Coord.). Dicion�rio Tem�tico do Ocidente Medieva. S�o Paulo: EDUSC, 2002.
BONNASSTE, Pierre. Dicion�rio de Hist�ria Medieva. Rio de Janeiro: Dicion�rios Dom Quixote n�18, 1981.
LOYN, Henry. Denifle, H. Die Statuten der Juristen � Universit�t Bologna. Archiv f6ur Literatur-und Kirchengeschichte des Mittelalters, v. III, p.256 e 259, 1887.
LOYN, Henry (Org.). Dicion�rio da Idade M�dia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.