O ensino de Hist�ria Antiga � capital para a forma��o de uma cidadania cr�tica. H� muitas d�cadas, Antonio Gramsci escrevia, no �Quaderno 12�, com bons argumentos, sobre como � importante e n�o abandon�vel o estudo das l�nguas mortas. Estuda-se o latim e o grego, dizia Gramsci, �n�o para ser camareiro, int�rprete, correspondente comercial, mas para conhecer, diretamente, a civiliza��o dos dois povos, pressuposto necess�rio da civiliza��o moderna, ou seja, para sermos n�s mesmos e nos conhecermos de maneira consciente�. Mas, porque come�ar pelas l�nguas antigas?
Ora, sabemos que a Hist�ria se faz com documentos, n�o apenas escritos, mas tamb�m a partir deles. N�o se pode conhecer, de forma razo�vel, uma civiliza��o, se n�o conhecermos sua l�ngua, seus conceitos, suas formas de express�o (FUNARI, 1995). O �mago de um povo est� em sua l�ngua, sem a qual a vida social n�o se estrutura (VERNANT, 1999). A l�ngua condiciona a cultura e os conceitos derivam dos limites e possibilidades de sua estrutura ling��stica (ROUANET, 2001, p.15). Essas constata��es universais adquirem, quanto ao grego e ao latim, um aspecto ainda muito mais premente: a ubiq�idade dessas l�nguas nas �pocas posteriores e, particularmente, em nossa pr�pria, tornam-nas ainda mais cruciais. De fato, boa parte dos conceitos modernos implica uma reapropria��o de no��es oriundas do mundo cl�ssico, como bem nos tem lembrado Heinhart Koselleck (e.g. �Begrifssgeschichte und Sozialgeschichte�) em seus estudos sobre a Begriffsgeschichte e a contemporaneidade dos n�o contempor�neo (�Gleichzeitigkeit des Ungleichzeitigen�). Voltaremos a isto um pouco mais adiante.
Retornemos ao pensador italiano. O estudo das l�nguas cl�ssicas possui ainda, segundo Gramsci, um outro aspecto positivo: � um estudo �rduo, que serve para �fazer contrair h�bitos de exatid�o, dilig�ncia, compostura, at� mesmo f�sica, concentra��o ps�quica sobre determinados objetos que n�o se podem adquirir sem uma repeti��o mec�nica de atos disciplinados e met�dicos�. Assim, um adulto ser� capaz de estar sentado a estudar �por dezesseis horas seguidas� apenas se, de crian�a, houver absorvido �os h�bitos apropriados por coer��o mec�nica�. Para o estudioso sardo, al�m disso, o estudo do latim era fundamental para o conhecimento da l�ngua franca da pen�nsula, ainda t�o pouco difundida em sua �poca, o italiano, �o italiano � o latim moderno�. Ainda nestes coment�rios, � o presente a premer pelo estudo do passado, as l�nguas mortas s�o partes de uma forma��o dura, trabalhosa, mas cujos resultados ser�o, tamb�m, mais resistentes.
O leitor ou ouvinte incauto poder� se perguntar se tais virtudes gramscianas n�o seriam v�lidas para os long�nquos anos 30 do s�culo passado, substitu�das pela moleza e facilidades da era digital (Cf. CANFORA, 2001). Com o uso de tradu��es, j� n�o se precisaria conhecer os originais. Com os programas de tradu��o, o monoglota bastaria. Dezesseis horas de estudo por dia, nem pensar! Contudo, Gramsci buscava algo que nenhuma tecnologia moderna pode fornecer: consci�ncia cr�tica, ou, em suas palavras, essere se stessi e conoscere se stessi consapevolmente.
Recentemente, Cl�udio de Moura Castro (2001) refletia sobre os valores embutidos na concep��o corrente da educa��o em nosso meio, que valoriza a artimanha, o brilho e o compadrio, em detrimento do estudo.
Nossa educa��o ainda valoriza o aluno genial, que n�o estuda � ou que, paradoxalmente, se sente na obriga��o de estudar escondido e jactar-se de n�o faz�-lo. O c�-d�-efe � diminu�do, menosprezado, � um pobre-diabo que s� obt�m bons resultados porque se mata de estudar. A vit�ria comemorada � a que deriva da improvisa��o, do golpe de mestre. (CASTRO, 2001)
Isto nos conduz � quest�o central desta interven��o. O abandono da Antig�idade cl�ssica como objeto de reflex�o, ou seu conhecimento de segunda m�o, leva ao aprofundamento do fosso entre a forma��o cultural das elites e das massas. O mundo cl�ssico pode aparecer tanto como inspirador da luta pela liberdade e pela igualdade, como pode, mais comumente, servir para justificar o status quo patriarcal e opressivo. � elite assimilada ao Ocidente, a Gr�cia antiga pode significar pureza �tnica, superioridade cultural ariana, justificativa da escravid�o (BERNAL, 1994, p.121). Esta postura justifica os �homens bons� pelos aristoi k�agathoi, o desprezo pelo trabalho pelo culto aristocr�tico da skhol� (WOOD, 1989, p.1-41), a superioridade racial pela repulsa aos barbaroi, de forma que a cultura europ�ia, da elite exploradora, se dissociasse da africana e oriental (BERNAL, 1991, p.213). O latim e o grego, transformados em l�nguas de domina��o, servem para mostrar a superioridade da inflex�o, Umlaut e Ablaut como exemplos da suposta primazia ling��stica a justificar a domina��o social (BERNAL, 1993, p.675).
A inven��o e uso de uma Antig�idade cl�ssica opressora �, portanto, muito anterior, mas muito mais persistente, do que as mais conhecidas e criticadas apropria��es fascistas de princ�pios a meados do s�culo XX (VISSER, 1992; GIORDANO, 1993). As palavras de Carl Schmitt, em 1934, sobre a identifica��o do d�spota com o direito, inspiradas tanto na tirania grega, como no direito imperial romano, retratam bem n�o apenas os lemas do nazismo como as aspira��es de poder de nossos senhores da terra:
der wahre F�hrer ist immer auch Richter. Aus der F�hrtum fliesst das Richtertum. In Wahrheit war die Tat des F�hrers echte Gerichtsbarkeit. Sie untersteht nicht der Justiz, sondern war selbst h�cheste Justiz
o verdadeiro L�der � sempre tamb�m juiz. Da lideran�a decorre o direito. Na verdade, a a��o do l�der j� era l�dima justi�a. Ela n�o se subordina � justi�a, ao contr�rio, constitui-se na mais alta justi�a. (apud HOFER, 1957, p.105).
N�o � este o poder discricion�rio de nossos seculares senhores (Cf. METCALF, 1990, p.291)? As aristocracias modernas se inspiravam nas antigas (WOOD, 1989, p.47-8), Napole�o levava para o campo de batalha os cl�ssicos, cuja leitura julgava indispens�vel (FERRERO, 2000).
Mas a Antig�idade n�o precisa ser arma da opress�o, elemento de aliena��o. Neste sentido, Virg�lio vem � mente, lido pelos inconfidente mineiros, como inspirador da busca da liberdade (BUC�LICA, I, vv. 27-28):
Et quae tanta fuit Romam tibi causa uidendi?
Libertas, quae, sera, tamen respexit inertem.
E qual o motivo t�o grande de visitares Roma?
A Liberdade, que, embora tardia, contudo olhou favoravelmente para mim, inerte.
Os incofidentes sabiam de cor a primeira Buc�lica virgiliana, de onde retiraram seu lema pela liberdade. Os camponeses espoliados das Buc�licas inspiraram a revolta dos mineiros, totis turbatur agris (v.6), �com as perturba��es em todos os campos� (Cf. MOURA, 1998). Libertas quae sera tamen, �A Liberdade, esta, ainda que tardia, contudo olhou favoravelmente para mim, que nada fiz�. A grandeza do mundo antigo, das civiliza��es grega e romana, assim como outras, est� em seu ecletismo, em suas m�ltiplas origens e caracter�sticas (BERNAL, 1991). A diversidade cultural antiga pode e deve ser apresentada em contraposi��o ao discurso da superioridade cultural das elites, no passado e no presente (Cf. FUNARI, 1997). Os textos cl�ssicos, lidos com acribia (CANFORA, 2000, p.22) e vis�o cr�tica, servem para opor-se � opress�o (Cf. PACHOUD, 1997).
Os livros did�ticos, muitas vezes, adotam uma vis�o herdeira dos ideais aristocr�ticos das elites europ�ias e brasileiras, apresentando o �milagre grego� como prova a superioridade de uns poucos e a inferioridade de muitos. Os modelos interpretativos correntes s�o normativos e hol�sticos, como se houvesse uma �nica cultura grega ou romana (aquela da elite), cujos preceitos seriam forjados pela aristocracia e aceitos pelas massas antigas. O trabalho seria, assim, desonroso, do qual se furtariam os bem nascidos e tentariam se livrar os outros (WOOD, 1989, passim). Estes modelos normativos tendem a refor�ar uma leitura pouco cr�tica da Hist�ria e a reiterar as desigualdades no presente. Na esteira dos modelos normativos, muitas vezes desaparecem as classes e, a fortiori, os conflitos de classe, seja porque n�o haveria classes no mundo antigo, seja porque conflitos n�o seriam o motor da Hist�ria, movida a consenso e submiss�o dos inferiores aos superiores. Misturam-se contextos antigos e modernos, como se houvesse ess�ncias inef�veis que permitissem afirmar, por exemplo, que a democracia existiu na Antig�idade e no mundo contempor�neo, assim como se pode incentivar n�o a reflex�o hist�rica, que distinguiria a democracia antiga da moderna, mas que estimula o senso comum da curiosidade.
� poss�vel que o livro did�tico escape a esses discursos alienantes e conservadores do status quo? A pergunta n�o � ret�rica, pois n�o raro se acaba culpando a forma, no caso, o livro did�tico, por um problema de conte�do. Os livros s�o sempre bons, at� mesmo os piores livros did�ticos. Afinal, leitores ativos, cr�ticos podem ser estimulados a desconstruir qualquer discurso. N�o se trata, portanto, de acabar com o livro, mas em lutar por melhores conte�dos, assim como por melhores condi��es de estudo e de trabalho na escola. A diversidade cultural, um dos grandes maitre-mots dos PCNs, est� a sugerir um conte�do menos normativo, menos enredado na Hist�ria dos vencedores e nas interpreta��es que privilegiam um passado feito de arreglos entre parceiros de um sistema de compadrio e clientela, em lugar das lutas e conflitos. A diversidade cultural (Cf. VERNANT apud BELEBONI, 2000, p.117) permite que se busque compreender gregos e romanos, mas tamb�m outros povos da Antig�idade, aristocratas e guerreiros, mas tamb�m camponeses e escravos, homens, mas tamb�m mulheres.
A Hist�ria da Antig�idade surge, ent�o, como elo de liga��o constante da realidade atual com suas origens ideol�gicas. O direito romano, base de nosso sistema jur�dico, precisa ser conhecido, para que possa ser relacionado com seus usos no presente (Cf. ROSSI, 2000), como o mostra, a recente tradu��o ao chin�s (JORNAL DA TARDE, 1996, p.7). Na verdade, s�o todas as nossas institui��es a exigir um recuo ao mundo antigo, sem o qual a compreens�o do presente ser�, no m�ximo, parcial. Partindo das aporias do quotidiano de nossos estudantes, pode-se chegar � Antig�idade de forma n�o apenas l�dica e prazerosa, como tamb�m e principalmente, significativa para a vida desses jovens.
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Agrade�o aos seguintes colegas: Renata Cardoso Beleboni, Martin Bernal, Ellen Meikins Wood. A responsabilidade pelas id�ias, naturalmente, restringe-se ao autor.