Discuss�es sobre a evolu��o cultural que originou a civiliza��o inca
 

M�rcio Rog�rio da Costa Letona
 
Inicialmente podemos dizer que o per�odo formativo final do mundo andino caracteriza-se pelo dom�nio da cultura Chavin cuja influ�ncia se estende por boa parte da regi�o andina durante este per�odo, ou seja, quase todo o atual territ�rio peruano.


J� durante o per�odo cl�ssico (100 � 900 d. C.) o mundo andino parece ter se dividido entre zonas de influ�ncia de tr�s grandes culturas: Mochica no litoral norte, Nazca no litoral sul e Tiahuanaco na regi�o do lago titicaca no altiplano.


Destas tr�s culturas do per�odo cl�ssico evolu�ram ou se originaram as duas principais culturas do per�odo p�s-cl�ssico, Chim� e Inca , que parecem ter sido influenciadas respectivamente pelas culturas Moche e Tiahuanaco. Chimus e Incas disputaram poder na regi�o andina, tendo os Incas vencido o conflito e estendido o seu dom�nio sobre todo o mundo andino.


A estrutura e organiza��o do imp�rio Inca, a sua cultura e at� sua base econ�mica foram origin�rias de milhares de anos de evolu��o cultural ocorrida na regi�o tendo origem na cultura Chavin e ao longo do tempo adaptando-se tanto aos diferentes estratos ecol�gicos quanto �s exig�ncias de sua pr�pria evolu��o relacionadas com a sua organiza��o social e pol�tica, como por exemplo: a centraliza��o urbana, rela��es de reciprocidade e propriedade coletiva. Al�m disso, os Incas foram grandes compiladores de conhecimentos que assimilavam das culturas as quais submetiam, criando assim a grande diversidade que foi o imp�rio Inca.


Assim, n�o como uma an�lise puramente evolucionista, mas como uma constata��o l�gica, podemos concluir que s� � poss�vel compreender a organiza��o que o imp�rio Inca atingiu antes da conquista europ�ia tomando-o como a continuidade de um processo de milhares de anos de evolu��o cultural.


� preciso que definamos que os aspectos culturais legados aos Incas chegaram at� sua cultura de duas formas principais, sendo a primeira pela transmiss�o cultural direta, como por exemplo � economia baseada na agricultura que se demonstrou uma estrat�gia eficiente de subsist�ncia em grupos urbanos desde o estabelecimento da cultura Chavin (1200 a. C.), como pode ser comprovado analisando as afirma��es a seguir:


A difus�o dessa planta rica em elementos nutritivos, cuja produtividade se intensificou por sele��o e hibrida��o reduziu progressivamente import�ncia da ca�a, da pesca e da coleta tanto no litoral como no interior montanhoso onde a agricultura adquiriu posi��o preponderante, entre as atividades de subsist�ncia (FAVRE, 1987, p.8).


A� o autor se refere ao fato que se desenvolveu desde o in�cio do per�odo formativo.


O culto � divindade-jaguar e a edifica��o de grandes estruturas nos centros de culto no final do per�odo formativo, evidenciam a import�ncia que este aspecto da cultura Chavin teve em sua organiza��o.


Na regi�o do litoral norte (de posterior influ�ncia mochica) podemos notar que foi muito importante a presen�a da religi�o com seus enormes centros de culto e rituais, que ainda est�o sendo estudados e descobertos como Sipan, onde foram encontrados al�m de objetos rituais e iconografia de car�ter religioso, �reas de habita��o que dever�o futuramente responder as nossas d�vidas sobre as culturas do per�odo cl�ssico.


De qualquer forma, a import�ncia da religi�o se estende para as culturas posteriores que surgem durante o per�odo cl�ssico e � evidente que na estrutura do imp�rio Inca era ponto fundamental como instrumento de legitima��o do Estado, se integrando na forma��o da classe dominante.


O Estado se imp�s � religi�o, mas o car�ter divino do Inca e sua influ�ncia nas for�as da natureza eram de suma import�ncia para o equil�brio da sociedade. Os rituais de fertilidade em tempos remotos eram baseados em oferendas com milho e sacrif�cios de animais ao longo do tempo adquiriram as caracter�sticas que notamos no per�odo incaico.


� prov�vel que rituais como os de consultar as v�sceras de animais sacrificados para fazer previs�es sobre o futuro tenham origem na cultura Moche, ou talvez at� na cultura Chavin e, ao que tudo indica, o pr�prio imperador assume o papel de tocar o solo com seu bast�o ou cetro para garantir boa colheita e prosperidade para a atividade que era o sustent�culo do poder no per�odo incaico.


Al�m disso, alguns usos da religi�o sugerem uma �ntima liga��o dos rituais antigos com a legitima��o do poder imperial, no que se refere � cerim�nia de investidura do imperador, por exemplo: �Antes de entrar no templo do sol, para a investidura oficial, pedia aos sacerdotes que lessem nas entranhas dos animais sacrificados a vontade expressa dos deuses de v�-lo ascender �s fun��es supremas�. (FAVRE, 1987, p.56). Havendo uma clara liga��o entre os rituais das culturas anteriores com os rituais sagrados no per�odo incaico.


H� uma tend�ncia desde Chavin a uma organiza��o dos centros cerimoniais urbanos, constru��o de edifica��es e organiza��o do trabalho de forma coletiva. Tendo ocorrido tamb�m o in�cio da agricultura de irriga��o que propiciou o alto desenvolvimento da produ��o agr�cola que, por sua vez, pode ter influenciado o in�cio das rela��es de reciprocidade que s�o as bases da organiza��o do trabalho nos ayllus Incas.


Por outro lado, esta organiza��o em centros urbanos exigia uma comunidade agr�cola que a sustentasse e tudo indica que as rela��es de reciprocidade tenham sido transmitidas durante o per�odo cl�ssico at� atingir as culturas do p�s-cl�ssico. Apesar de atividades como o pastoreio, a tecelagem e a cer�mica apresentarem grande desenvolvimento durante o per�odo cl�ssico � ineg�vel que desde a expans�o da agricultura irrigada, todas as culturas posteriores basearam sua economia na agricultura, culminando com a complexa rela��o de reciprocidade presente no per�odo incaico, que consistia em uma rela��o de obriga��es entre os integrantes do ayllu e seu curaca atrav�s da presta��o de trabalho coletivo nas terras do mesmo e nas terras do Estado (MITA), mas esta rela��o tamb�m exigia do curaca que administrasse a redistribui��o, pois ele mantinha local de armazenamento de produtos que utilizava em �pocas de necessidade para mater o sustento do ayllu.


O ayllu era uma forma de organiza��o baseada em v�nculos de parentesco e n�o se relaciona com a propriedade privada, ou seja, desde o per�odo Chavin a propriedade da terra era coletiva e todos os membros da comunidade eram respons�veis pelos cuidados necess�rios com a prepara��o da terra, plantio e obras de irriga��o.


Portanto o ayllu que � origin�rio da cultura Chavin, ou ainda mais antigo, teve papel fundamental para a estrutura��o econ�mica das culturas posteriores como Moche, Tiahuanaco e por conseq��ncia a cultura Inca:


El ayllu debi� quedar constitu�do en forma definitiva durante el segundo mil�nio de la era pasada, desplazando plenamente a las bandas de cazadores y recolectores. No sabemos aun si desde entonces comenzo a dividirse en mitades, en cambio es bastante claro que el conjunto de ayllus fueram conformando unidades mayores de car�cter tribal y mas tarde verdaderas naciones� (LUMBRERAS, 1980, p.17).


Segundo Henri Favre (1987, p.32): �O curaca distribu�a as terras, organizava trabalhos coletivos e regulava conflitos�. O ayllu reconhecia tamb�m uma divindade tutelar, ou huaca, que era em geral um ancestral do curaca no qual ele se apoiava para exercer sua autoridade. Al�m disso, era responsabilidade dele o sustento de �rf�os e vi�vas da comunidade e a concess�o de retribui��es aos camponeses que cumpriam a MITA. Assim, alguns camponeses eram designados periodicamente para trabalhar sob a responsabilidade do curaca cuidando do plantio, dos rebanhos e de fiar e tecer a l�, esse trabalho era rotativo de maneira que sempre havia um grupo a servi�o do curaca enquanto os demais cuidavam das suas �pr�prias terras�.


Em um processo conjunto ao desenvolvimento da religi�o e ao incremento de uma economia de base agr�ria pr�-incaica, tamb�m existia uma forma de organiza��o pol�tica que se baseava em chefias ou curacados onde os curacas, chefes locais, detinham um poder local fundado em rela��es de reciprocidade com a sua comunidade agr�ria.


Desta forma havia uma rede de rela��es de reciprocidade que ligava os camponeses a seus chefes e os chefes aos curacas em uma organiza��o que se transmitiu atrav�s do tempo at� a �poca do imp�rio Inca.


Os curacados podiam ser de grande porte que abarcavam v�rios ayllus at� pequenos com poucos ayllus e o que determinava a influ�ncia de um curaca era a sua capacidade de mobilizar trabalho. No mundo antigo andino o importante era manter o controle da terra e da for�a de trabalho para produzir, preservando as rela��es de reciprocidade com o ayllu, tais como: oferecer abundantes ra��es alimentares aos campesinos que estivessem prestando servi�o em �suas terras�, garantir-lhes alojamento, vestimentas e ao final dos servi�os ceder-lhes l�, pe�as de tecido e �s vezes animais do seu rebanho, assim o curaca mantinha com os campesinos uma rela��o de considera��o m�tua e podia contar com os mesmos quando necess�rio.


Toda a evolu��o j� vista, contribuiu para que no per�odo incaico o meio ecol�gico t�o in�spito a primeira vista estivesse plenamente dominado. Desde as altas montanhas passando pelo altiplano at� a regi�o costeira e a floresta tropical eram suficientemente controladas contribuindo para a economia Inca com diversos produtos. As �trocas comerciais� entre diferentes regi�es se realizavam principalmente como retribui��o em favor da presta��o da MITA, visto que muitos ayllus detinham �reas nos diversos estratos ecol�gicos (litoral, altiplano e floresta tropical).


O cultivo de milho, batata, o pastoreio de lhamas, a confec��o de cer�mica , a tecelagem e a metalurgia, embora fossem produto de uma heran�a cultural direta ou assimila��o das culturas dominadas eram as principais atividades da economia incaica.


Talvez um dos aspectos mais interessantes da economia do imp�rio � que a autonomia dos ayllus n�o favorecia o com�rcio entre regi�es, sendo assim, n�o se formavam rotas comerciais bem definidas e a circula��o de produtos entre regi�es acabava sendo dentro do mesmo ayllu evitando assim divis�es internas que pudessem causar conflitos de ordem econ�mica.


Assim, o estado atrav�s dos curacas e de outros funcion�rios administrativos controlava com certa facilidade a gera��o e distribui��o de recursos dentro de seu dom�nio mantendo um equil�brio que era sustentado pelas rela��es de reciprocidade internas do ayllu.

Em termos de divis�o de classes podemos dizer que havia na base da divis�o social Inca os campesinos em geral e chefes de ayllus menores, em uma posi��o intermedi�ria estariam os curacas e funcion�rios administrativos, a classe dominante seria formada pelo Inca e sua corte , al�m dos sacerdotes.


Dentre as classes populares podemos destacar os campesinos (hatun runa), os artes�os, os servos do Inca (yana) e os mitmaq que eram grupos deportados de suas regi�es de origem com seus chefes originais que mantinham suas liga��es com as regi�es de origem, os Incas usavam essa t�tica de deporta��o para afastar grupos que entravam em conflito com grupos vizinhos ou quando se rebelavam contra os curacas ou funcion�rios do Estado, fato que se assemelha a algumas culturas da Antig�idade no oriente, como os Persas que faziam o mesmo com outros povos conquistados.


Todo esse mosaico de fun��es e classes era a sociedade Inca no per�odo do imp�rio. Uma das formas de refor�ar os la�os entre o Inca, os curacas e os chefes locais, era o Inca oferecer esposas aos curacas e os mesmos oferecerem esposas secund�rias ao Inca (la�os de parentesco), al�m disso normalmente os filhos dos curacas passaram a ser educados na capital do imp�rio o que propiciava uma acultura��o dos mesmos, muito proveitoso pois os sucessores dos curacas das regi�es conquistadas assimilavam a cultura e a educa��o tradicionalmente incaica e o estado possu�a um trunfo em caso de conflitos localizados nos diversos ayllus.


O tahuantinsuyu (as quatro terras) como era denominado pelos Incas, possu�a uma complexa divis�o administrativa que ia do topo (Inca e sua corte) at� a base (campesinos), passando pelos diversos estratos sociais diferenciados, primeiramente era dividido em quatro regi�es, que se subdividiam em ordem decimal por n�mero de fam�lias que ocupavam cada �rea, existindo funcion�rios administrativos para controlar cada uma dessas subdivis�es do imp�rio.


Pode-se tra�ar uma rede de organiza��o que come�a no pequeno ayllu (que nem sempre era t�o pequeno, como j� vimos) tem uma rela��o de reciprocidade com o curacado que por sua vez tem uma rela��o de reciprocidade com o imp�rio na figura do Inca.


Por isso, o Estado Inca organizou um complexo sistema para controlar a produtividade dos ayllus, atrav�s de censo e controle por parte dos funcion�rios administrativos al�m da constru��o de estradas pavimentadas, grandes obras de irriga��o (fundamentais em uma economia de base agr�ria em expans�o) e conseq�entemente grandes cidades, tudo isso constru�do e desenvolvido durante a grande expans�o das conquistas militares Incas que culminaram com o controle estabelecido por Viracocha (1400 d. C.) e Pachacuti (1438 d. C.).


Quando falamos de culturas pr�-colombianas � necess�rio ressaltar uma caracter�stica importante, quando da morte o Inca se instaurava um per�odo de desordem que durava at� que se resolvesse a sucess�o, normalmente esse per�odo era turbulento e as fac��es que pleiteavam o poder entravam em conflito at� que uma delas obtivesse a lideran�a.


Por todas as quest�es levantadas, acreditamos que a influ�ncia das culturas anteriores foi muito importante para a forma��o do Estado Inca e conforme demonstramos a religi�o, a organiza��o econ�mica (economia de base agr�ria) e a organiza��o administrativa foram resultado de uma s�ntese cultural, sendo que, podemos perceber tra�os das culturas mais antigas na cultura Inca.


Nosso objetivo com este ensaio foi discutir como essas caracter�sticas se manifestaram, procurando analisar sua rela��o com a evolu��o cultural ocorrida para contribuir com a discuss�o do assunto apresentando argumentos e desenvolvendo brevemente o tema.


Por isso, nos parece �bvio pensar o estado Inca como o �pice de um processo de evolu��o cultural na regi�o andina, n�o temos a pretens�o de esgotar o assunto, pois , com o avan�o dos estudos arqueol�gicos e das fontes escritas, sobretudo as cr�nicas dos conquistadores poderemos aclarar nossas d�vidas sobre a quest�o da evolu��o cultural andina.



Refer�ncias

Enciclop�dia dos Fatos. Rio de janeiro: Globo, v.7, 1996.

FAVRE, H. A Civiliza��o Inca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

LUMBRERAS, L. El Per� pr�-hisp�nico. In: Nueva Historia General del Peru. Lima: MoscaAzul, 1980, p.11-38.





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