Este trabalho � parte de uma pesquisa sobre os perigos que estiveram associados a crian�as e adolescentes no s�culo XX. Aqui focalizo certas tens�es decorrentes das novas modalidades de comportamentos de jovens que, nos anos 1960, desafiavam valores institu�dos e abriram espa�o para pr�ticas instituidoras de outra moral e de outros costumes. Retom�-las constitui uma oportunidade de interferir no debate sobre a juventude de nosso dias, explorando as possibilidades de recria��o do legado que nos ficou dos 'anos rebeldes'.
As apreens�es suscitadas pelos movimentos da juventude nos anos 1960 assumiram m�ltiplas formas. Os efeitos desses movimentos dificilmente poderiam ser isolados e destacados de uma s�rie de pr�ticas que se tecem numa urdidura tensa e complexa. Todavia, � poss�vel configurar certos momentos hist�ricos a partir da correla��o de for�as que faz convergir os temores nascidos em diferentes �mbitos numa dire��o determinada. No Brasil, o Golpe de Estado de1964 foi um desses fatos polarizadores de tens�es sociais, sendo que um p�lo se imp�s sobre o outro. O medo do comunismo, seguindo uma tradi��o de quase meio s�culo, esteve associado ao medo da �perda da propriedade�, da �perda da liberdade�, da �dissolu��o da moral e dos bons costumes�, do �ate�smo�, dentre outros que a propaganda dos ide�logos do golpe evocava. As marchas da fam�lia com Deus pela liberdade, organizadas por setores da Igreja Cat�lica, constituem uma demonstra��o eloq�ente do tipo de converg�ncia que se estabeleceu entre temores distintos, nivelados pela amea�a de um �inimigo insidioso� que poderia ser visto em quaisquer das manifesta��es menos enquadr�veis nos modelos aprovados. Em tal conjuntura, os comportamentos de adolescentes e dos jovens de maneira geral chegaram a ser interpretados como mais uma das formas de manifesta��o da influ�ncia do �mal�.
Depois do golpe e da subseq�ente repress�o aos estudantes, artistas e intelectuais, houve um per�odo de ressurgimento de manifesta��es de rep�dio ao regime, inclusive na grande imprensa, que tivera papel de destaque na articula��o da derrubada do governo Jo�o Goulart (AQUINO, 1999; SKIDMORE, 1988). Uma efervesc�ncia cultural se fazia sentir no plano da m�sica, do cinema e do teatro, sendo que as manifesta��es art�sticas problematizavam a derrota pol�tica, repensando o pa�s, a papel anteriormente atribu�do aos intelectuais, as articula��es feitas com a cultura popular e com a cultura de massas (XAVIER, 1993). Reinventavam-se tradi��es ao tempo em que �deglutiam-se� influ�ncias.
Numa outra dire��o, assistia-se ao incremento do mercado de bens voltados para o p�blico adolescente, como os filmes estrelados por Roberto Carlos, os discos e os programas da chamada jovem guarda. Mas um leque de novas programa��es n�o deixava de dirigir-se ao segmento juvenil ampliado, trazendo as estrelas do momento para os audit�rios, mostrando as diferentes manifesta��es musicais dos jovens, incluindo as transmiss�es dos festivais da can��o popular.
Nessas circunst�ncias, setores afinados com a nova ordem estabelecida n�o cessavam de lan�ar seus tent�culos sobre os grupos tradicionalmente vistos como pass�veis de enquadramento normalizador, al�m de intentarem expandir seu poder de interfer�ncia na sociedade com �mpeto revigorado. A preocupa��o com as novas formas de express�o dos jovens e com a maneira pela qual assuntos tais como relacionamento entre casais, sexo e div�rcio eram abordados na imprensa deu ensejo a algumas interven��es dr�sticas de juizes de menores do Rio de Janeiro e de S�o Paulo, como foi o caso do embargo de dois n�meros da revista Realidade.
Na edi��o de novembro de 1966, Realidade celebrava o sucesso de rapazes e mo�as que estavam compondo e cantando �as coisas da vida, amor e liberdade� e que disputavam o gosto da juventude com o i�, i�, i� (ritmo associado aos Beatles e, no Brasil, ao grupo de cantores que se reunia no programa Jovem Guarda). O autor da reportagem, Narciso Kalili, definia a diferen�a entre os dois grupos de compositores em termos pol�ticos e culturais: os jovens da MMPB (movimento de m�sica popular brasileira) falavam �tamb�m dos problemas pol�ticos, sociais e econ�micos de seu tempo�, porque �eram universit�rios e possu�am informa��o�(1). A reportagem prosseguia tra�ando outras diferen�as entre os dois grupos, que em termos musicais estariam ligados a tradi��es distintas: uma essencialmente vinculada � ind�stria de discos e outra � �m�sica urbana nascida da imagina��o popular�. O popular era, portanto, um valor a ser real�ado na oposi��o ao industrial, ainda que os cantores deste estilo tamb�m estivessem obtendo sucesso na ind�stria do disco. Esta era uma forma de ver as coisas, uma percep��o inclusive n�o partilhada por todos os integrantes do grupo do MMPB.
O artigo constitu�a, na verdade, uma tomada de posi��o num debate que articulava prefer�ncias na �rea da m�sica a op��es pol�ticas e existenciais. Uma marca daqueles dias. Discutia-se os novos comportamentos entre os casais, a p�lula anticoncepcional e o div�rcio. Nesta mesma edi��o da Realidade, a pesquisa, "o que os brasileiros pensam do div�rcio", indicava, entre outros aspectos, uma aparente contradi��o: os velhos eram mais favor�veis ao div�rcio que os jovens. Num momento em que ocupavam a cena p�blica � enquanto estudantes em manifesta��es pol�ticas, como artistas nos festivais de m�sica ou nos programas de televis�o e em outras formas de comportamento nas ruas das cidades � os jovens n�o poderiam deixar de ser inquiridos sobre os temas pol�micos do momento. E a revista, cujo projeto editorial apostava no interesse de seus leitores pela �realidade�, tinha divulgado, na edi��o de agosto, reportagem intitulada "a juventude diante do sexo", cuja repercuss�o indicava o quanto o tema permanecia envolvido em tabus. Na edi��o de novembro, a se��o cartas continuava trazendo as opini�es sobre a abordagem do tema, configurando uma pol�mica entre os leitores que saudavam a iniciativa da revista e aqueles que a execravam. As cartas favor�veis � reportagem valorizavam-na, ressaltando sua fundamenta��o na �coleta de dados reais�, a utilidade das informa��es que veiculava e sua fun��o esclarecedora, inclusive para os pais que tinham dificuldade em abordar o assunto com os filhos. Por outro lado, os detratores da pesquisa falavam em nome dos valores enraizados na tradi��o conservadora. O Sr. Jo�o Miguel, de Santa Maria, Rio Grande do Sul, por exemplo, acusava os donos da revista de estarem �sacrificando os mais sagrados valores da civiliza��o�. Um missivista que se identificou como �pai de quatro rapazes� expressava sua preocupa��o pelos filhos, pois n�o queria para nora �uma mo�a que j� sabe demais�. Quaisquer que fossem as origens das cartas condenando a reportagem, elas constitu�am sintoma de que o sexo ainda era tabu em muitos setores da popula��o, principalmente no que se referia � sua pr�tica entre jovens.
Dentre aqueles que publicamente se manifestaram contra a reportagem, estava o Juiz de Menores do Rio de Janeiro, Alberto Augusto Cavalcanti de Gusm�o, que proibira a divulga��o da segunda parte da pesquisa em n�mero subseq�ente da revista. Em resposta aos editores, que lhe remeteram as cartas de leitores contr�rios � sua medida, o Juiz de Menores enviava correspond�ncia � reda��o da revista, mostrando a quantidade de manifesta��es de apoio que ele pr�prio havia recebido de associa��es cat�licas, e solicitando aos editores da revista a divulga��o integral de sua decis�o. Nela, o ato de proibi��o da segunda parte da pesquisa adquiria foros de algo solidamente fundado em preceitos jur�dicos, como se pode ver pelos trechos selecionados a seguir:
A lei 2083 autorizando o Juiz de Menores a declarar o car�ter obsceno de quaisquer publica��es n�o fornece o conceito de obsceno. � falta de defini��o legal deve-se criar uma defini��o doutrin�ria, procurando atender aos fins sociais que a lei se dirige e �s exig�ncias do bem comum. [...] Acrescenta Nelson Hungria que "n�o � necess�rio que o ato represente uma expans�o er�tica ou vise � excita��o da lasc�via alheias" [...] A condi��o indispens�vel para a configura��o do il�cito est� na publicidade, o que verificado, d� lugar ao surgimento do ultraje p�blico do pudor (art. 233 do C. P.) O conceito de obsceno, portanto, quer na lei penal quer na lei de imprensa (art. 53) n�o pode deixar de ser o mesmo. A sensibilidade humana � vari�vel. Casos haver� em que se torna dif�cil afirmar que o sentimento m�dio de pudor foi atingido. � particularmente significativo que a lei tenha atribu�do ao juiz de menores, e n�o a outro magistrado, a compet�ncia para declarar a obscenidade. H� neste fato, de maneira impl�cita, mas inteiramente desvelada, uma recomenda��o especial, um intuito pedag�gico. O pronunciamento judicial, em jurisdi��o toda especializada, h� de atender ao esp�rito que norteou o C�digo de Menores. � totalmente indispens�vel que o juiz tenha presente, ao decidir, aquelas circunst�ncias que �fa�am temer influ�ncia prejudicial sobre o desenvolvimento moral, intelectual ou f�sico de menores e possam excitar-lhe perigosamente a fantasia, despertar instintos maus ou doentios, corromper pela for�a de suas sugest�es� (art. 128, p. 4� do C�digo de Menores). Parece evidente, em face desse racioc�nio, que a lei, ao induzir � conceitua��o de obsceno, foi mais severa e colocou o conceito ao n�vel da minoridade. J� n�o seria poss�vel dizer, com N�lson Hungria, que "obsceno � o que atrita com o sentimento m�dio de pudor ou os bons costumes". A lei foi mais longe e colocou o julgador em guarda, tamb�m, contra o atentado pedag�gico. Ora, firmado estes pressupostos, � evidente que a mat�ria publicada na revista Realidade de agosto corrente, sob o t�tulo �A juventude diante do sexo�, � de natureza obscena. [...][grifos do autor].
O trecho � indicativo de que a fun��o pedag�gica atribu�da � jurisdi��o de menores teve que ser real�ada no argumento como uma forma de isentar a esfera jur�dica de extrapola��o no julgamento de valor. Nem mesmo o sentimento moral m�dio � uma das f�rmulas consagradas pelo positivismo jur�dico � funcionava com muito destaque no argumento do Juiz de Menores. Como ele o indicou, era �particularmente significativo que a lei tenha atribu�do ao juiz de menores, e n�o a outro magistrado, a compet�ncia para declarar a obscenidade.� De fato, caso a lei estivesse sob a al�ada da justi�a comum � com seu �cl�ssico� formalismo jur�dico � seria mais complicado proibir, de forma sum�ria, uma revista. Portanto, naquele contexto em que comportamentos inovadores podiam ainda se expressar e ser debatidos publicamente (depois do golpe de 1964, mas antes do AI-5), o Juiz de Menores ocupava novas fun��es estrat�gicas.
Em janeiro de 1967, novamente a revista Realidade foi objeto de embargo. Desta feita foi o Curador de Menores de S�o Paulo, Luiz Santana Pinto, que requeria ao Juiz de Menores a �imediata e sum�ria apreens�o desta publica��o, onde seja encontrada � venda nesta comarca�. Tratava-se da edi��o dedicada � mulher brasileira hoje, que estava nas bancas desde a madrugada de 30 de dezembro de 1966. O curador tinha sido �gil e expedira seu requerimento no mesmo dia. O Juiz de menores acolheu a sugest�o e despachou ordem para que os servi�os de vigil�ncia e ronda especial apreendessem os exemplares, solicitando para isto a colabora��o de Delegacia de Costumes.(2) No dia seguinte, o Juiz de Menores da Guanabara, Cavalcanti de Gusm�o, tamb�m determinava a apreens�o dos exemplares da edi��o de janeiro. Os respons�veis pela revista recorreram da decis�o. Seu advogado em S�o Paulo, logo em 3 de janeiro, impetrava mandado de seguran�a junto ao presidente do Tribunal de Justi�a daquele estado. No Rio de Janeiro, outro advogado entrava com recurso na justi�a carioca. Na edi��o de fevereiro, os leitores de Realidade puderam ver as raz�es apresentadas pelas partes envolvidas.
O despacho do Juiz de menores de S�o Paulo no Di�rio Oficial era sum�rio, dizendo que a publica��o continha �algumas reportagens obscenas e profundamente ofensivas � dignidade e � honra da mulher, ferindo o pudor e, ao mesmo tempo, ofendendo a moral comum, com graves inconvenientes e incalcul�veis preju�zos para a moral e os bons costumes�. Face a tal acusa��o, o advogado da revista em S�o Paulo julgava que o mandado de seguran�a era o instrumento mais adequado � defesa, pois o pronunciamento do juiz se fundara no artigo 53 da lei de imprensa, que �configura a hip�tese de medida de car�ter administrativo de autoridade judicial, contra a qual a lei n�o d� recurso, nem possibilita o pedido de correi��o visto que n�o h� tumulto (Reg. Interno do Tribunal de Justi�a de S�o Paulo, art. 360)�. Na Guanabara, o juiz Cavalcanti de Gusm�o n�o adotou o estilo lac�nico de seu colega de S�o Paulo. Pelo contr�rio, lembrava que a revista voltava aos temas que haviam levado a pronunciamentos anteriores daquele ju�zo, e que,
fugindo ao prop�sito comum do periodismo no Brasil � informar corretamente, divulgar as coisas e as id�ias dentro do panorama de nossos costumes, aceitando ou combatendo moderadamente nossos h�bitos e nossas tradi��es � resolveu bem ao contr�rio, encetar uma campanha e realizar uma verdadeira revolu��o radical no terreno da moral familiar� [grifos meus].
Acusava a revista de n�o fazer apenas pesquisas, mas defender teses, exaltar a m�e solteira, combater a virgindade. Extrapolava a atribui��o de obscenidade �s reportagens, agregando a esta a acusa��o de �atentado aos bons costumes�, ato de �despotismo da imprensa livre�, que ministrava �em doses maci�as de divulga��o, uma doutrina moral que n�o foi acolhida pelos �rg�os de soberania da na��o � as casas legislativas � e por isto mesmo n�o estava nas leis�.
Por seu turno, o advogado da revista no Rio de Janeiro retomava ponto por ponto a acusa��o de Cavalcanti Gusm�o. Tentava valer-se das �armas� do pr�prio acusador, fazendo voltar a lei de imprensa contra o juiz que falara em seu nome, argumentando que este extrapolara sua fun��o de atribuir car�ter obsceno � mat�ria, chegando a arbitrar acerca da moral e dos bons costumes. Na seq��ncia, sua argumenta��o trazia � tona enc�clicas papais para mostrar que �a autoridade m�xima� em assuntos de fam�lia e de moral olhava com toler�ncia as transforma��es do mundo. O apelo a documentos da Igreja tinha ainda o sentido estrat�gico de se apoiar na institui��o cuja alta hierarquia se colocara ao lado do regime instaurado em 1964, inclusive promovendo as �marchas da fam�lia, com Deus pela liberdade�, um dos dispositivos de mobiliza��o para a derrubada do governo de Jango. O advogado sustentava que a informa��o sobre a realidade era a �nica forma, inclusive, de proteger os jovens contra os perigos que se encontravam na pr�pria realidade do mundo, dizendo:
REALIDADE n�o est� pregando que as mulheres deixem de ser virgens, n�o est� pregando que as mulheres devam se esquivar do casamento, n�o est� pregando que as m�es devam abandonar seus filhos, n�o est� incutindo, por qualquer forma, que o amor filial desapare�a ou diminua, ou que os la�os de fam�lia se afrouxem. Mostra as experi�ncias de muitas mulheres a respeito desses aspectos de desagrega��o da fam�lia, para que todas que se encontram � beira do perigo, evitem dar o passo fatal� [grifos meus].
A defesa, portanto, fincava seus argumentos no terreno em que se movia a acusa��o, nos aspectos legais, mas tamb�m no que dizia respeito aos valores que eram acionados. E os dois lados � acusa��o e defesa � n�o deixavam de recorrer a uma tr�ade consagrada: a lei, a moral e a ci�ncia. Entretanto, divergiam acerca do conte�do, da forma e da maneira de funcionar de cada uma delas. Assim, face � acusa��o de infra��o da lei da imprensa pela revista, seu advogado revidava alegando abuso do poder pelo juiz; face � proibi��o da reportagem em nome da defesa da moral e dos bons costumes, sustentava que o acesso � informa��o era a via capaz de evitar o �passo fatal�; face � delimita��o de um lugar estrito para a informa��o cient�fica, exaltava a divulga��o da ci�ncia no espa�o p�blico da imprensa. O interessante a observar quanto ao uso da tr�ade consagrada � que, num momento dito de �recesso� da cidadania, portarias e despachos de ministros terminavam adquirindo o estatuto de lei. Assim, em 28 de agosto de 1964, o Ministro da Justi�a tinha determinado o refor�o da atua��o dos juizes de menores no setor de divers�es p�blicas, autorizando-os a suspend�-los liminarmente.(3) Por seu turno, os guardi�es da moral institu�da aliavam-se no acatamento �s leis de exce��o na tentativa de impedir que comportamentos instituidores de outra moral pudessem se impor e legitimar-se com o respaldo da forma��o de uma imagina��o p�blica que lhe desse um sentido instituinte. Assim, na batalha de id�ias que se travava, a revista Realidade usava o recurso da autoridade da ci�ncia, argumentando que a pr�pria Igreja Cat�lica curvava-se ao poder temporal da ci�ncia, afirmando, num de seus documentos:
A perturba��o atual dos esp�ritos e a mudan�a das condi��es de vida est�o vinculadas a uma transforma��o mais ampla das coisas. Esta faz com que as ci�ncias matem�ticas e naturais ou as que tratam do pr�prio homem adquiram preponder�ncia crescente na forma��o do pensamento, enquanto as artes t�cnicas, derivadas daquelas ci�ncias, influenciam na ordem da a��o. Este esp�rito cient�fico produz um sistema cultural e modos de pensamento diferentes dos anteriores. A t�cnica progride a ponto de transformar a face da terra e j� tenta subjugar o espa�o interplanet�rio. A intelig�ncia humana dilata de certa maneira o seu dom�nio tamb�m sobre o tempo. Sobre o passado, pelo conhecimento hist�rico. Sobre o futuro pela arte prosp�ctica e pela planifica��o. O progresso das ci�ncias biol�gicas, psicol�gicas e sociais n�o s� contribui para que o homem tenha um conhecimento melhor de si mesmo, mas tamb�m ajuda a influenciar diretamente na vida da sociedade, usando m�todos t�cnicos. Ao mesmo tempo, o g�nero humano prev� e cada vez mais regula o pr�prio crescimento demogr�fico� [grifos meus].(4)
Na era do expert, os �doutos em ci�ncia� vinham a ser os profissionais das diversas �reas especializadas que os cursos universit�rios estavam formando, em n�mero crescente. Numa conjuntura onde o autoritarismo se radicalizara e os comportamentos inovadores eram �patrulhados� por segmentos que se colocavam a tarefa de erradicar o �mal�, valer-se da opini�o dos profissionais da Sociologia, da Psicologia, da Medicina, entre outros, era tamb�m uma forma de lutar contra este patrulhamento. Os especialistas tamb�m compunham equipes encarregadas de enquetes sobre gostos e comportamentos, que alimentavam n�o s� a imprensa, mas a ind�stria. As pesquisas de opini�o, procurando distinguir as diferen�as de comportamento em termos de uma estratifica��o �social� composta de tr�s classes, �alta, m�dia e baixa� (retraduzidas �s vezes nas tr�s primeiras letras do alfabeto), alimentavam (como v�m alimentando at� hoje) os debates, refor�ando ainda o valor da estat�stica como medida da �realidade�. Fundamentada em pesquisa desse tipo, a revista Fatos e Fotos de janeiro de 1968 veiculava reportagem cujo t�tulo era "A m�e moderna n�o pode ser quadrada". Os dados permitiam ao rep�rter concluir que �entre as m�es cariocas de classe m�dia, n�o se sente grandes varia��es na maneira de educar, quer elas morem na Zona Sul ou na zona Norte, quer trabalhem fora ou n�o�. A diferen�a residia na idade: as mais novas, de 20 a 30 anos, rejeitavam os padr�es atrav�s dos quais foram educadas e consideravam que a tarefa de educar filhos deveria ser dividida com os pais; as mais velhas, entendiam que a educa��o era �um problema mais pr�ximo da m�e� e n�o eram t�o cr�ticas face � educa��o que elas pr�prias haviam recebido, embora considerassem necess�ria uma atualiza��o.
O que vinha a ser considerado uma m�e moderna? A soci�loga convocada pela reportagem dizia:
m�e moderna � aquela que procura orientar os filhos de acordo com as exig�ncias da sociedade moderna e com os pr�prios valores morais que ela aceita. Certos valores est�o sendo criticados, isto �, podem ser aceitos ou n�o, dependendo da forma��o da m�e e da educa��o que ela der aos filhos desde pequenos. Mas a m�e de hoje � sobretudo aquela que prepara os filhos para assumirem a maior liberdade poss�vel em todos os setores da vida social. E liberdade � algo consciente, que inclui, necessariamente, a no��o de responsabilidade para consigo pr�pria e com a sociedade�.(5)
Era tamb�m aquela que estava �sempre preocupada e quase sempre incerta sobre o que deve[ria] fazer�, entre a �liberdade sem medo� e a �liberdade sem excesso�.(6) As incertezas, portanto, giravam em torno dos limites e da extens�o da liberdade, o que implicava em decidir quando, como e relativamente a qu� os filhos poderiam ter suas pr�prias escolhas. �Desenvolver a iniciativa, a independ�ncia e as pr�prias op��es � recomend�vel de modo gradual, mas n�o sem di�logo, nem com a abdica��o do papel e das responsabilidades da m�e�, afirmava um psic�logo.(7) Se a maioria das m�es podia concordar que as crian�as deveriam ter liberdade de escolha em certos itens � brinquedos, amigos, divertimento �, as d�vidas poderiam ser muitas quanto, por exemplo, ao hor�rio de dormir ou ao que fazer com a mesada. Quanto aos adolescentes, tamb�m havia concord�ncia entre as m�es sobre a possibilidade de escolha de itens tais como amigos, maneiras de se vestir, cursos e col�gios, mas as meninas ainda eram objeto de preocupa��o especial e �a mini-saia e o biqu�ni ainda [eram] casos para muitas discuss�es e l�grimas, principalmente na Zona Norte�.(8)
O foco das ang�stias e incertezas das m�es era a liberdade sexual, principalmente no que dizia respeito �s meninas. Segundo a reportagem, �mesmo as m�es mais compreensivas em outras quest�es se revelam un�nimes em considerar que �a sociedade brasileira ainda n�o est� preparada para permitir liberdade sexual � mulher��. Liberdade e felicidade deveriam caminhar juntas, de maneira que a felicidade dos filhos n�o fosse a alternativa � infelicidade dos pais. Caberia ent�o �s m�es, no entender de uma �escritora de 30 anos�, n�o identificada pela revista, �defender em p� de igualdade� a sua felicidade e a de seus filhos.
Enfim, o v�nculo experimental(9) que a nova gera��o mantinha com o presente fazia emergir comportamentos inovadores, bem como rea��es adversas nos que se atribu�am a miss�o de zelar pela �moral e os bons costumes�, como certos Ju�zes de Menores. Assim, em 1968, ano que emblematizou a �insurg�ncia juvenil�, os Ju�zes de Menores se reuniram em Bras�lia no seu III Encontro Nacional. E, num momento de intensa agita��o estudantil, em que mesmo os secundaristas (menores, portanto) eram trancafiados nos por�es da repress�o, os juizes se alongavam em infind�veis discuss�es em torno de um projeto de C�digo de Menores que focalizava sobremaneira a quest�o dos adolescentes em �perigo moral�, refor�ando o poder dos juizes de menores para intervir nos bares, casas noturnas e publica��es.
Por seu turno, muitos pais, assustados com o comportamento dos filhos, especialmente das garotas � que se igualavam aos jovens do sexo masculino, fumando, bebendo e mantendo rela��es sexuais com seus namorados � corriam aos Juizados de Menores na esperan�a de que ali encontrassem apoio para a normaliza��o dos filhos �ingovern�veis�. Alguns desses jovens chegaram a ser trancafiados nos internatos mantidos ou patrocinados pela Funda��o Nacional do Bem Estar do Menor - Funabem, onde adolescentes em �perigo moral� conviviam com �infratores� e �portadores de condutas anti-sociais� em experi�ncias que dificilmente poderiam ser chamadas de educativas.
A pesquisa nos arquivos da atual Vara da Inf�ncia e da Juventude do Distrito Federal nos permitiu localizar, entre outros aspectos, os focos de tens�o que se expressaram como choque geracional ou confronto de valores no transcurso de tr�s d�cadas (de 1960 a 1990), identificando os deslocamentos ocorridos em rela��o a tais focos. Nesta exposi��o, restrita a certos epis�dios ocorridos nos anos 1960, procuramos captar um momento em que as transforma��es nos costumes associadas ao comportamento da nova gera��o foram abordadas como �desvios� face � normalidade ou �atentados� aos poderes vigentes. Momentos como esse s�o vividos de forma tensa e contradit�ria por mo�as e rapazes ainda na adolesc�ncia, e tamb�m por homens e mulheres assustados com as experi�ncias de seus filhos, em campos anteriormente reservados aos adultos, quando n�o mais podem se fiar na tradi��o, mas ainda desconfiam da validade das mudan�as em curso. Fato � que muitos vieram a construir suas vidas apoiados na experi�ncia vivida, enquanto outros provavelmente sucumbiram. Contudo, o legado da gera��o que se vinculou ao mundo dessa maneira experimental foi a cria��o de pr�ticas instituidoras de novas formas de liberdade e, portanto, de novos encargos e responsabilidades. Face �s tens�es de hoje e ao retorno da discuss�o sobre a responsabilidade, a mem�ria dos anos rebeldes pode funcionar como um legado para os que assumem o compromisso e a responsabilidade de passar para os que vieram depois de n�s a for�a da tradi��o n�o conformista.
Notas
* Trabalho apresentado na mesa redonda �Juventude, Sociedade e Transforma��es Hist�ricas� integrante da programa��o do XXI Simp�sio Nacional de Hist�ria organizado pela ANPUH em Niter�i, em julho de 2001. Constitui s�ntese de um cap�tulo de minha tese de doutorado intitulada SOB O SIGNO DO PERIGO: O ESTATUTO DOS JOVENS NO S�CULO DA CRIAN�A E DO ADOLESCENTE. Bras�lia: Departamento de Hist�ria da UnB, 2000.
(1) �A Nova Escola do Samba�, reportagem de Narciso Kalili, Revista Realidade, novembro de 1966, p. 117. Na capa, a revista trazia foto de alguns representantes da nova gera��o de cantores de m�sica, como Nara Le�o, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Toquinho, �Magro� (do MPB4) e Rubinho (do Zimbo Trio). No interior, uma grande reportagem sobre os representantes da �nova escola do samba�, todos jovens, entre 18 e 25 anos, que adquiriam express�o p�blica nos festivais de m�sica brasileira.
(2) Cf. �A Edi��o Proibida: acusa��o e defesa�, reportagem que integrava a edi��o de fevereiro de 1967 da revista Realidade. A reportagem informava que o despacho de 30 de dezembro, atribu�do ao Juiz de Menores, n�o estava assinado por ele. Contudo, no dia seguinte, o Di�rio Oficial de S�o Paulo publicava a decis�o do Juiz de Menores da capital paulista, Sr. Artur de Oliveira Costa. Cf. p. 6.
(3) Conferir em Anais do III Encontro Nacional de Juizes de Menores. Bras�lia, Servi�o Gr�fico do Senado Federal, 1968, p. 71.
(4) O advogado Jo�o de Oliveira filho, na defesa da revista Realidade junto � justi�a carioca, disse ser este um trecho da enc�clica papal Gaudium et Spes.
(5) Segundo a reportagem, estas eram as palavras da soci�loga Leda Barreto.
(6) Fazia-se men��o ao livro de A S. Neill, famoso por ter criado uma escola regida pela democracia � Summerhill � onde as regras, as atividades e os conte�dos eram discutidos e estabelecidos pelos pr�prios alunos. Cf. Neill, A S. Liberdade sem medo. 12� edi��o, S�o Paulo: Ibrasa, 1971.
(7) Estas eram as palavras, segundo a revista, do psic�logo Eli�zer Shneider.
(8) A minissaia foi lan�ada em 1967, pela figurinista inglesa, Mary Quant. Durante um certo tempo o termo vinha separado com h�fen, como na reportagem. O �dicion�rio do Aur�lio� o coloca sem h�fen, minissaia.
(9) Conferir o sentido do termo em Marialice Forachi. A Juventude na Sociedade Moderna. S�o Paulo: Pioneira, 1972.
Refer�ncias
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