A guerra do Iraque e a crise das "grandes democracias"
 

Jo�o Paulo Derocy C�pa
 
Os conflitos diplom�ticos e b�licos nos quais o mundo est� inserido no in�cio do s�culo XXI t�m muito mais a nos confidenciar do que os n�tidos conflitos em busca do �ouro negro� em que os americanos se afundam com o Iraque e outrora com o Afeganist�o (na minha concep��o, os americanos possu�am grande interesse no �cord�o� de petr�leo que existe em volta dos afeg�os, em pa�ses como o Uzbequist�o).


Os ve�culos de comunica��o internacional muito t�m a explorar esse momento conjuntural, associando-o a uma figura quase �demon�aca� de George W. Bush e sua guerra mundial do petr�leo em meio a crise onde todas as economias nacionais est�o desacelerando de forma brutal, com conseq��ncias sociais terr�veis, principalmente para as classes sociais menos abastadas.


Sabe-se que a estrat�gia americana de ocupa��o do Oriente M�dio � uma coisa pensada e discutida desde a d�cada de 1970, em meio ao pren�ncio de uma crise no setor energ�tico americano, al�m do esfacelamento de seu parque industrial e a ascens�o do Jap�o e Alemanha como grandes concorrentes, al�m dos enormes preju�zos econ�micos com a pol�tica b�lica da Guerra Fria (a mesma que derrubou a URSS). O que aconteceu de l� at� o in�cio deste s�culo foi uma forma de colocar esse plano em pr�tica na busca do petr�leo. A consolida��o das posi��es de Israel foram parte do plano, que agora precisa realmente ser finalizado, sob pena da atual crise americana se tornar irrevers�vel.


No entanto, � necess�rio que n�o se pense apenas nas conseq��ncias econ�micas de um poss�vel conflito e o envolvimento de outros pa�ses, mas existe uma quest�o institucional envolvida neste jogo: at� que ponto a legitimidade dos Estados democr�ticos como os EUA e Inglaterra � posta em risco, tendo em vista a opini�o publica contr�ria � guerra?


Essa quest�o seria f�cil de ser respondida se estiv�ssemos tratando de pa�ses com pouca ou nenhuma tradi��o democr�tica (a maioria dos pa�ses africanos e at� mesmo da Am�rica Latina, como o pr�prio Brasil), onde a soberania popular � leg�tima, mas n�o respeitada, e a pr�pria democracia n�o tem ra�zes fincadas nos sistemas pol�ticos vigentes. S�o nesses pa�ses em que os direitos e as aspira��es populares s�o normalmente deixados de lado para satisfazer aos interesses das elites locais e nacionais, criando um abismo entre o povo e o poder. Temos exemplos no Afeganist�o, Iraque e mesmo em Cuba, onde posi��es b�licas s�o tomadas sem qualquer acesso da popula��o. No entanto, esse obst�culo n�o existe quando estamos tratando de pa�ses onde existem as democracias mais antigas do planeta, como a dos EUA e dos pa�ses do Velho Mundo, sendo algumas centen�rias.


Por isso o problema se torna mais delicado nesse segundo grupo de pa�ses, e isso se agrava com o conflito no Iraque, que divide a diplomacia e opini�o p�blica internacionais. Dentro da ONU, o �racha� foi inevit�vel, com os EUA liderando a coaliz�o formada por Gr�-Bretanha, Espanha e Bulg�ria, contra R�ssia, Fran�a, Alemanha, S�ria, Angola e outros pa�ses. A luta contra o conflito tem como objetivo geral evitar conseq��ncias graves a j� ca�tica ordem mundial, j� que se entende que a guerra nesse momento n�o � a melhor op��o. A postura alem�, assim como a francesa parecem cautelosas pelo fato de suas economias n�o andarem bem das pernas, j� que isso pode enfraquec�-las ainda mais. Na pior das hip�teses estes pa�ses (a chave da coaliz�o contra a guerra) est�o esperando receber boas �recompensas� para entrar no conflito ao lado dos americanos, como est� recebendo a Turquia.


J� � de conhecimento geral a afronta americana � ONU, e as palavras de Collin Powell e Bush em favor do conflito s�o uma afronta n�o s� a institui��o criada para ser a mantenedora da paz, assim como esquece o desejo do povo americano de evitar um segundo �Vietn� e a morte de milhares de americanos, j� que as retalia��es por parte do Iraque s�o naturais.


Voltando ao foco principal da discuss�o, ser� que nesse momento se pode falar numa crise das democracias nacionais em troca de uma pol�tica b�lica aos moldes da Guerra Fria? Essa pergunta norteia a quest�o da legitimidade do Estado dentro dos moldes da democracia atual, onde a representatividade popular � ponto fundamental. Segundo o soci�logo Max Weber, existem tr�s formas de se manifestar a legitimidade dentro de um sistema pol�tico: a tradicional, a carism�tica e a legal. Esta �ltima se manifesta atualmente dentro do racioc�nio pol�tico ocidental, tem poder estatut�rio definido por uma m�quina burocr�tica que faz valer o poder de manter ou de mudar os postulados em vigor, fazendo valer tamb�m as compet�ncias jur�dicas que lhe cabem.


Dessa forma a legitimidade est� intimamente ligada � conson�ncia do poder com a opini�o publica e assim cria-se um paradigma importante para o direito pol�tico: at� que ponto a legalidade jur�dica de um pa�s garante a sua legitimidade frente ao povo?


A legalidade e a legitimidade tem um papel fundamental dentro das rela��es de poder entre o Estado e a sociedade civil, pois mesmo que um governo seja judicialmente legal, s� ser� legitimo se tiver a aprova��o da opini�o publica, e isso � importante para se detectar uma ferida que cresce a cada dia no corpo da centen�ria democracia americana.


Ao que parece, existe uma forte mobiliza��o popular dentro do territ�rio americano contra a interven��o no Oriente, j� que a pr�pria popula��o americana sente os enormes reflexos sociais de se desviar enormes somas monet�rias para custear o conflito (cerca de 300 bilh�es de d�lares) enquanto a pobreza cresce, como afirma Eliane Carvalho, que � jornalista e mestra em Ci�ncia Pol�tica por Harvard, em coluna do jornal O Dia no estado do Rio de Janeiro. Ela diz que investimentos na educa��o superior est�o sendo cortados assim como est�o sendo feitos cortes de gastos nos or�amentos dos Estados americanos, prejudicando a sa�de, creches e reduzindo a dura��o do ano escolar.


Todos esses fatores levam a crer numa poss�vel (por enquanto � somente uma especula��o) perda de credibilidade no governo de Bush pelo acr�scimo da guerra em seu curr�culo que j� conta com os atentados de 11 de setembro, a Guerra do Afeganist�o, o desastre do Col�mbia; todos cooperando para um certo descr�dito quanto aos seus atos. E justamente nesse aspecto que est� a liga��o com a legitimidade de seu governo, que escapa aos tr�mites jur�dicos e cai para o lado ideol�gico, ponto sempre muito elogiado em todos os governos norte-americanos. No entanto, n�o se sabe at� que ponto a tradi��o de solidariedade do povo americano vai suportar toda essa crise que assola de modo especial e de certa forma in�dita o seu pr�prio povo.


� oportuno lembrar que a perda da legitimidade de um sistema pol�tico � a perda de um escudo vital que o defende de sua pior amea�a. Abre-se uma brecha para o poder revolucion�rio, que cumpre seu papel de mostrar todas as feridas deixadas pelo governo ileg�timo, todas as suas fraquezas e o quanto se pode ganhar com novas mudan�as a serem feitas. Apesar desse coment�rio ser de certa forma exagerado, n�o se pode esquecer que a via revolucion�ria sempre foi um mecanismo de luta contra os males da sociedade, seja ele qual for, e temos exemplos em todos os cantos do mundo: Revolu��o Francesa, Revolu��o Russa, Revolu��o Mexicana, Revolu��o Chinesa, etc. Pensando dessa forma, acreditamos que os EUA, sempre combatentes ferrenhos das pr�ticas revolucion�rias, podem um dia sucumbir diante da amea�a da forma��o dos grupos anti-imperialistas e at� mesmo anti-americanos. Isso � algo que pode estar pr�ximo, j� que todos esses movimentos tiveram um ponto em comum e que de certa forma � tamb�m aos americanos: o poder s� � leg�timo quando vai de encontro as necessidades populares e as finalidades do sistema pol�tico (nesse caso do poder democr�tico).


S�o justamente os grupos de oposi��o, pol�tica ou n�o, os poss�veis respons�veis por uma futura reviravolta no sistema democr�tico norte-americano, pois s�o eles os principais grupos de press�o na atual conjuntura internacional. Isso n�o significa, no entanto, atribuir-lhes a total responsabilidade pela crise da legitimidade j� discutida e da soberania nacional dos pa�ses - alvo da guerra de expans�o imperialista dos EUA. Os interesses capitalistas acabam muitas vezes atropelando os interesses em comum da ordem internacional como estamos vendo atualmente. O imperialismo � inclusive, uma pr�tica internacional que olha com desconfian�a os limites nacionais. Esta � uma guerra que s� interessa ao seleto grupo da industria petrol�fera norte-americana, que pouco se importa em dizimar grande parte da popula��o iraquiana, assim como fez com os afeg�os, em troca de alguns bilh�es de d�lares negros. Essa guerra n�o � do povo americano, como insiste em discursar Collin Powell, ao dizer que a guerra � um mecanismo para defender a ordem internacional e principalmente o povo americano da amea�a terrorista. Como a guerra pode ser uma defesa se n�o se pode provar que o perigo realmente existe? Uma retalia��o �preventiva� pode ser um risco �s soberanias nacionais, pois isso pode servir de exemplo a outros pa�ses fortes que despejar�o seu arsenal contra os fracos como forma de �prevenir� uma poss�vel amea�a. Pode-se imaginar essa situa��o quando se trata do conflito Israel x Palestina ou �ndia x Paquist�o, e as conseq��ncias ca�ticas para a ordem mundial.


Como forma de concluir essa discuss�o, devemos pensar na possibilidade das institui��es democr�ticas americanas ca�rem em descr�dito, j� que o princ�pio vital da doutrina democr�tica est� sendo simplesmente ignorado: a soberania popular. O povo americano est� sendo colocado de lado, esquecido, em troca da manuten��o dos interesses econ�micos do grupo que colocou George W. Bush no poder: os magnatas do petr�leo. Os grandes fil�sofos e te�ricos do poder devem estar perplexos com o crime que est� sendo cometido contra os direitos do homem e do cidad�o, n�o s� americano, mas de todas as partes do globo, e contra a democracia mundial, sem pensar nos riscos de uma traum�tica viagem sem volta para os tempos de tirania do absolutismo de reis como Luis XIV e das suas pr�ticas pol�ticas absurdas.






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