A pol�tica americana e a nova conjuntura internacional
 

Jo�o Paulo Derocy C�pa
 
Para um melhor entendimento das decis�es tomadas pelos americanos dentro do que parece ser uma pol�tica de confrontos que se inicia com a chamada �Doutrina Bush� e seus poss�veis reflexos na pol�tica internacional, podemos nos voltar rapidamente para quando tudo come�ou, na segunda metade do s�culo XIX, com o desenvolvimento da filosofia americana e como ela influenciou a constru��o da democracia americana, que corre nesse momento um grande risco pelo confronto de Bush com a ONU e a comunidade internacional.


Para isso, recorro a A. S. Bogomolov (1979, introdu��o) e sua Filosofia americana no s�culo XX, que apesar de ser uma leitura impregnada de conceitos marxistas, configura uma fonte rica em informa��es que ajudam a construir e desconstruir todo o aparelho ideol�gico americano, desde seu pragmatismo da segunda metade do s�culo XIX at� o que ele chamou de neo-realismo do p�s-Segunda Guerra Mundial. No entanto, para esse trabalho n�o � necess�rio que se fa�a um mapeamento completo, mas alguns apontamentos convenientes ao objetivo principal da discuss�o. Inicialmente, � importante saber que o desenvolvimento da filosofia americana sempre esteve ligado � manifesta��o dos pensadores burgueses, interessados em construir um sistema ideol�gico defensor de suas premissas, como afirma o programa do PCUS (Partido Comunista dos Estados Unidos):


Os tipos e formas de ideologia burguesa, os m�todos e meios de enganar os trabalhadores s�o muito variados. Mas a ess�ncia � uma s�: a defesa do ultrapassado sistema capitalista. Isto se refere tamb�m � filosofia, que � o fundamento te�rico da ideologia, o seu suporte principal. Mas a ess�ncia social das doutrinas filos�ficas n�o est� na superf�cie. Os fil�sofos que defendem os interesses das classes dominantes sempre procuraram ocultar seus �dogmas defensores� sob a fachada de uma investiga��o �independente�, da procura objetiva e desinteressada da verdade. E se na sociologia e na �ci�ncia pol�tica� burguesa ainda se pode dizer que o capitalismo atual representa a �sociedade do bem estar�, o fil�sofo, via de regra, enxerga a profundidade da contradi��o dos antagonismos, do aspecto tr�gico da exist�ncia humana na sociedade contempor�nea onde impera o capital. Por isso se manifesta cada vez mais em primeiro plano, na filosofia, a apologia do sistema vigente, a qual fixa as contradi��es e os conflitos sociais, mas transfere a sua fonte para a pr�pria exist�ncia humana, para a natureza do homem. Deste modo, retira-se a acusa��o contra o verdadeiro culpado � o capitalismo atual � enquanto as calamidades por ele geradas s�o atribu�das � �exist�ncia humana� como tal ou, na melhor das hip�teses, ao �s�culo�, ao �s�culo do �tomo�, ao �s�culo do temor�, etc. Da�, difundir-se na ideologia burguesa a id�ia da �aliena��o do homem� como sendo seu destino natural em qualquer sociedade� (BOGOMOLOV 1979, introdu��o).


Mesmo que essa afirma��o tenha sido constru�da em cima do confronto entre o capitalismo e o socialismo, ela � importante ao analisarmos dentro da pol�tica internacional adotada pelos americanos ao longo de toda a segunda metade do s�culo XX e at� mesmo antes disso. Desde a cria��o da Doutrina Monroe no in�cio do s�culo XIX j� se manifestava nos EUA a id�ia dela se mostrar como o �Dono do Mundo�, apresentando argumentos que atribu�am seu direito divino de guiar os povos em desenvolvimento para o caminho da sua democracia e seus ideais de liberdade ou �liberalismo�. Tanto o car�ter religioso (divino) quanto o evolucionista prov�m da filosofia te�sta (Le Conte) do s�culo XIX onde Deus n�o seria a for�a motriz da evolu��o da natureza, mas ele daria condi��es aos elementos naturais de evoluir com autonomia, respeitando de certa forma a capacidade e as potencialidades de cada �na��o�, dessa forma evolui a filosofia religiosa americana e a sua proximidade com a sua pol�tica burguesa.


Nos parece muito comum quando se fala que as calamidades s�o atribu�das � exist�ncia humana ou a quest�o do s�culo, como o do terror, pelo qual passamos atualmente de acordo com o discurso dos americanos, como forma de legitimar determinado tipo de a��es dentro do contexto internacional. No final do s�culo XIX em defesa da id�ia da �Am�rica para os americanos� recha�ou o perigo europeu na Am�rica como forma de garantir a autonomia desses mercados consumidores para sua ind�stria, que crescia a todo vapor.


Mais tarde, j� na Segunda Guerra Mundial, o ideal anticomunista foi uma manifesta��o da ideologia dos EUA, criando segundo Bogomolov, uma forma de intimidar o �americano m�dio�, afastando-o da inten��o dos burgueses nas quest�es econ�mica e pol�tica, assim como isolar as na��es da Am�rica Latina da amea�a em seus mercados consumidores, al�m do perigo do socialismo se infiltrar ideologicamente e destronar o sistema capitalista, como aconteceu na Cuba de Fidel Castro. Portanto, o s�culo do terror que se instalou desde o 11 de Setembro e que culminou com a tomada do Afeganist�o em um confronto que dura at� hoje, com pequenos grupos afeg�os que restaram do antigo governo ainda lutando em territ�rios isolados, al�m de que a �bola daquela vez�, Osama Bin Laden n�o foi e provavelmente n�o ser� capturado. A �bola desta vez�, o velho �aliado� Saddam Hussein, parece que vai pelo mesmo caminho, pois mesmo que as tropas americanas consigam instaurar um governo democr�tico no Iraque, sofrer� sempre com as retalia��es da popula��o iraquiana insatisfeita com a presen�a ianque.


A Guerra do Afeganist�o e do Iraque mostram claramente que um aspecto da pol�tica americana n�o mudou ao longo de todo esse tempo: o seu claro papel de �juiz�, capaz de compreender e saber o que � melhor para si e para as outras na��es, com a posi��o de l�der da comunidade capitalista, como era em tempos de Guerra Fria, legitimado nessa �poca pelo embate contra os socialistas de Stalin.


A domina��o pol�tica, econ�mica e ideol�gica dos Estados Unidos � not�vel, e cada vez mais, quando percebemos o reflexo disso na superioridade b�lica apresentada a cada confronto (m�sseis teleguiados, armas de destrui��o em massa, uniformes resistentes, avi�es invis�veis) e � fato de que podem ser cobrados de forma muito dura num futuro que n�o sabemos se est� pr�ximo ou n�o, com a ascens�o de novas pot�ncias econ�micas como a China (que cresce de 4% a 5% por ano), �ndia ou qualquer outro pa�s que tome consci�ncia de que pode crescer confrontando os acordos e embargos tribut�rios impostos pelos americanos. Dessa forma, a conjuntura de crise em que os americanos se encontram podem releg�-los a segundo ou terceiro planos dentro de 30 ou 40 anos, como afirma o ex-presidente Bill Clinton em artigo da Global Viewpoint, quando diz que os Estados Unidos ser�o julgados com base na maneira em que utilizaram seu �momento m�gico� (a superioridade americana que se apresenta desde os anos 70), e a forma como empurraram os outros pa�ses para o s�culo XXI. Os erros cometidos pelos americanos ser�o julgados da mesma forma como eles fazem, ajudando ou prejudicando-os de acordo com a sua conveni�ncia.


Sem deixar de enfatizar o papel de lideran�a que tem os americanos no mundo, Bill Clinton declara o que ele entende como postura ideal para os americanos:


Eu creio que � a de construir um mundo que v� al�m da interdepend�ncia para chegar a uma comunidade global integrada, com responsabilidades compartilhadas, benef�cios compartilhados e valores compartilhados� (CLINTON, 2002).


Numa posi��o mais prudente do que a de George W. Bush, ele defende o fortalecimento dos �rg�os de apoio internacional como a ONU, como forma de facilitar a reconstru��o de diversas na��es assoladas por conflitos de diversas naturezas. No entanto, essa reconstru��o deve obedecer, como diz o pr�prio Bill Clinton, as especificidades econ�micas, pol�ticas e culturais dos pa�ses. Esse posicionamento deveria ser compartilhado por George W. Bush, que tomou atitudes mais agressivas.


Chuck Raasch, no jornal USA Today, apresenta o posicionamento de George W. Bush as v�speras das elei��es em 2000 e faz um paralelo em rela��o a sua brusca mudan�a ap�s os atentados em 2001. No primeiro momento, sua postura � cautelosa, pode-se dizer at� pacifista, voltada para as quest�es internas de sua economia, que j� apresentava os primeiros sinais de desacelera��o ap�s o enorme crescimento que os americanos tiveram durante toda a d�cada de 90. De acordo com Raasch, quando perguntado sobre a proje��o dos Estados Unidos no exterior, Bush teria respondido: �Caso agirmos como uma na��o humilde, mas forte, seremos bem vistos�.


Ap�s 11 de Setembro, seu novo posicionamento quanto �s quest�es internacionais passaram a ser de extens�o e confronto, sob o veemente argumento de Bush da luta contra o terror, lutando com o Afeganist�o, Iraque, o poss�vel confronto com a Cor�ia do Norte e o Ir� (futuras amea�as nucleares). Para se ter conclus�es mais precisas e definitivas em rela��o a essa nova postura americana, � necess�ria uma analise mais criteriosa da nova doutrina que se inicia, buscando compreender seu posicionamento, motiva��es etc. At� mesmo porque se sabe que isso � apenas o in�cio de uma nova conjuntura, onde as pe�as est�o se encaixando e criando sua l�gica.


Isso n�o significa que velhas motiva��es n�o estejam ligadas a isso, como � o caso do petr�leo, colocado como o grande motivo da guerra pelos cr�ticos de George W. Bush, mas � apenas uma das vis�es que j� surgiram para legitimar a nova pol�tica de confrontos dos EUA. Outras existem e circulam pelos meios de comunica��o, inclusive uma delas circulou pela internet (o autor seria Said Barbosa Dib, professor de Hist�ria) nos �ltimos dias e mostra um panorama bastante preocupante por parte dos Estados Unidos, j� que essa guerra poderia estar sendo motivada pela amea�a da OPEP de abandonar o padr�o d�lar nas transa��es internacionais do petr�leo, substituindo pelo euro. O Iraque teria feito essa convers�o em 2000 como forma de fugir das seguidas desvaloriza��es do d�lar frente � moeda europ�ia, e isso poderia ser seguido por outros pa�ses, levando a uma crise de efeito domin� dos Estados Unidos e de todos os pa�ses que adotaram o sistema neoliberal, inclusive o Brasil. Essa informa��o estaria sendo tratada como segredo de Estado (� estranho um segredo de Estado estar circulando com essa liberdade pela internet, mas n�o deixa de ser uma vis�o do conflito, por isso deve ser apresentada) para evitar um colapso no sistema financeiro mundial pelo inflacionamento do pre�o do petr�leo, base da economia americana e mundial. Ainda de acordo com o autor, esse � o motivo pelo qual a Alemanha, defensora ferrenha do euro � terminantemente contra a guerra e a Inglaterra, que n�o adotou o euro em seu pa�s, � a favor da guerra. Seguindo essa vertente, George W. Bush n�o seria esse grande louco que todos veiculam, mas sim estaria tentando salvar o seu pa�s de um grande colapso econ�mico que se seguiria.


Volto a afirma��o de que os reais interesses da pol�tica americana n�o podem ser definidos em t�o pouco tempo, apenas dois ou tr�s anos de conflitos. No entanto, � latente o interesse dos americanos em controlar essa rica fonte de recursos minerais existente no Iraque; isso se confirma pela not�cia de que os americanos bem antes do in�cio da guerra j� abriram licita��es para empresas americanas e estrangeiras para a ger�ncia de setores da economia iraquiana num futuro governo ap�s a deposi��o de Saddam Hussein. Inclusive, empresas americanas devem ser respons�veis pelos portos e aeroportos, assim como pelas empresas de reconstru��o da infraestrutura do �novo Iraque�. Isso cria certa desconfian�a quanto aos reais interesses americanos nesse territ�rio, ainda mais com as dificuldades encontradas pelas ind�strias estrangeiras para participar dessas licita��es.


Avan�ando na discuss�o, podemos pensar nesse momento nos reflexos da doutrina de George Bush no panorama internacional a partir das quest�es levantadas por Chuck Raasch; na verdade tr�s quest�es que, segundo ele, est�o em aberto.


A primeira faz men��o a uma pol�tica de reconstru��o das na��es em guerra, j� que George W. Bush teria demonstrado desd�m em rela��o a esse assunto, tendo em vista o caso do Afeganist�o, que se encontra ainda em situa��o extremamente delicada, em se tratando da ajuda humanit�ria e da reconstru��o de sua infraestrutura. No caso do Iraque, numa guerra desejada pelos �americanos� at� o �ltimo momento, Bush n�o faria mais do que sua obriga��o em construir o que ele mesmo destruiu.

A segunda quest�o � em rela��o a forte oposi��o dos pa�ses do Velho Mundo no assunto da guerra, principalmente na Europa Ocidental, que tem como agravante o fortalecimento do euro frente ao d�lar. Podemos perceber nesse conflito, que as interfer�ncias francesas e alem�s contra o conflito podem tornar essa rela��o ainda mais delicada, levando a uma aproxima��o com os pa�ses do leste europeu, rec�m-libertos do jugo socialista e desejosos de integrar de forma mais ativa o bloco capitalista (caso da Pol�nia e da Rep�blica Theca). Estes novos pa�ses estariam nesse momento mais comprometidos com um projeto neoliberal, tendo em vista sua necessidade de se inserir nesse novo contexto pol�tico.


Um terceiro ponto, este parece menos prov�vel, mas sempre uma amea�a: um novo conflito diplom�tico com a R�ssia, tendo em vista a sua oposi��o �s resolu��es de guerra e o poss�vel aumento de sua representatividade nas Na��es Unidas. At� porque a ind�stria b�lica que sobreviveu a Guerra Fria ainda tem condi��es de fazer frente a uma postura mais agressiva dos EUA em sua dire��o, al�m de um poss�vel ressentimento russo quanto aos pa�ses do Leste Europeu que adotam um ap�s o outro o sistema capitalista.


E a Am�rica Latina? Onde fica neste novo cen�rio internacional? Inicialmente cabe destacar a postura diplom�tica brasileira, abertamente contra o conflito, buscando segundo o presidente Luis In�cio Lula da Silva, a lideran�a continental numa coaliz�o contra a guerra e at� mesmo liderando o grupo dos pa�ses em desenvolvimento, numa lideran�a alternativa aos americanos (lideran�a mais humanit�ria). A dificuldade para se consolidar essa lideran�a est� no fato desta onerar o pa�s, que j� est� envolto a uma grande crise de sua credibilidade internacional. Quanto � Argentina, sua neutralidade em rela��o ao conflito parece ser uma nega��o consentida do conflito, uma ressalva pelo fato de depender da ajuda financeira dos americanos e do FMI.


Num �mbito geral, a Am�rica Latina acaba perdendo neste conflito. Desde o processo de descoloniza��o da �frica e �sia, os pa�ses europeus e os EUA sempre buscaram bancar a reconstru��o desses pa�ses para afast�-los da amea�a comunista, garantindo-lhes mais uma �rea de influ�ncia, ampliando o �cord�o sanit�rio� aos sovi�ticos. Com o fim da Guerra Fria, a situa��o mudou, j� que findava a amea�a da Uni�o Sovi�tica, portanto a ajuda humanit�ria dos grandes pa�ses n�o era mais necess�ria (uma vis�o mesquinha, tendo em vista que a situa��o atual de anarquia � em grande parte culpa dos pa�ses colonizadores). Parecia ser a vez da Am�rica Latina, que desde o fim das ditaduras militares na d�cada de 80 passam por uma profunda crise econ�mica e pol�tica em decorr�ncia da fr�gil democracia instalada em seus pa�ses, facilitando o aparecimento de profundas convuls�es sociais, principalmente o crime organizado.


No entanto, a Guerra do Iraque e o deslocamento do eixo considerado de situa��o mais cr�tica para o Oriente M�dio vai retardar ainda mais a ajuda que os pa�ses latino-americanos tanto necessitam, j� que temos os gastos com a reconstru��o do Iraque e a promessa americana de terminar de vez com o conflito entre israelenses e palestinos. Sem esquecer os riscos de mais gastos com futuras guerras contra a Cor�ia do Norte e o Ir�, desgastando ainda mais a economia mundial e retraindo os mercados, prejudicando mais ainda a Am�rica Latina. Outro fator que pode ser levado em conta � que a maioria dos pa�ses do nosso continente esteve contra os americanos na ofensiva, afrouxando la�os para ajudas futuras do FMI, Banco Mundial e dos pr�prios americanos. De acordo com Nahum Sirotsky(1), ap�s a guerra, � bem prov�vel que os americanos estreitem la�os com a Espanha, It�lia e Gr�-Bretanha, seus grandes aliados na guerra. Deixando os latino-americanos mais longe de qualquer apoio. Isso pode justificar a postura de Lula em ratificar uma lideran�a alternativa para os pa�ses em desenvolvimento exclu�dos dos planos americanos, fortalecendo suas rela��es econ�micas e assim escapando de um poss�vel embargo.


Como pode se ver abre-se um leque de novas op��es para a conjuntura internacional nas pr�ximas d�cadas, e � obvio que muita coisa ainda pode mudar, mas a heran�a da circularidade hist�rica nos tem muito a dizer, al�m de muitas li��es a nos dar, ainda mais aos americanos que parecem n�o saber administrar com tanta sabedoria o seu vasto imp�rio.



Notas

(1) Nahum Sirotsky � correspondente iG em Israel.


Bibliografia

BOGOMOLOV, A.S. A filosofia americana no s�culo XX. Rio de Janeiro: Civiliza��o Brasileira, 1979. Introdu��o.

CLINTON, Bill. Os EUA deveriam liderar, n�o dominar.
In: O Estado de S�o Paulo. 2002. Dispon�vel em: http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2002/12/22/int017.html







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