Atualizado em 05 de dezembro de 2003
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Livros

Livro: Um herege vai ao Para�so
Autor(es): Pl�nio Freire Gomes
Editora: Companhia das Letras
Ano: 1997
Nº de páginas: 207

Em 1744, as chamas inquisitoriais portuguesas reduziriam a cinzas o corpo j� sem vida de um condenado. Submetido ao supl�cio do garrote, favor concedido aos que expressavam o desejo de morrer como crist�os, ele teria sua voz silenciada para sempre se, ironicamente, o pr�prio Santo Of�cio n�o tivesse se encarregado de preservar-lhe a mem�ria. Os autos do processo, revisitados ap�s s�culos de sil�ncio, fariam ressoar novamente a voz daquele personagem sem rosto, por�m com um nome: Pedro Rates Henequim.


� justamente a partir dos registros da Inquisi��o depositados na Torre do Tombo que Pl�nio Freire Gomes se prop�s a reconstituir a biografia e o pensamento desse personagem em �Um Herege Vai ao Para�so�. Ao faz�-lo, apresenta-nos a um vision�rio que ousou elaborar uma sistema de mundo alternativo, aglutinando todas as contradi��es com as quais conviveu ao longo dos seus sessenta e quatro anos (1680-1744). Publicado em 1997, o livro surgiu da disserta��o de mestrado em Hist�ria defendida na USP em 1994, sob a orienta��o de Laura de Mello e Souza.


Dos dez cap�tulos nos quais a obra se divide, tr�s t�m um car�ter biogr�fico: os dois primeiros e o nono. Neles se esbo�a a trajet�ria de Pedro Rates, tomando como ponto de partida o ano de 1741, quando compareceu � Mesa do Santo Of�cio. Em seguida a aten��o se volta para sua inf�ncia em Portugal, sua passagem pela Col�nia, as circunst�ncias um tanto obscuras que antecederam sua pris�o em 1740 e o desenrolar do processo que o condenaria � morte (1).


No terceiro cap�tulo, intitulado �Tabuleiro da lucidez�, o autor procura fazer uma sintaxe do pensamento de Henequim, identificando o modo como raciocinava. Os cinco cap�tulos seguintes procuram fazer uma an�lise tem�tica das teses por ele defendidas (apresentadas em anexo no livro), passando por sua cosmogonia e suas concep��es relacionadas � linguagem, � Virgem Maria, ao Para�so Terrestre e ao Quinto Imp�rio. O arremate � dado no d�cimo cap�tulo, que recebe o t�tulo sugestivo de �O testamento do herege�, no qual a obra se apresenta como apologia da alteridade.


A fundamenta��o te�rica de Pl�nio Freire Gomes � por ele enunciada na introdu��o ao livro. Fica evidente a sua filia��o aos aportes de Carlo Ginzburg (1987), sobretudo no que se refere ao uso de fontes inquisitoriais (levando em conta a presen�a de �filtros�) e ao conceito de circularidade entre os diferentes n�veis culturais (a saber, o popular e o erudito) . O autor, com as devidas reservas, chega mesmo estabelecer um paralelo entre Henequim e Domenico Scandela (personagem que o italiano explora em �O Queijo e os Vermes�).


A partir da rela��o com Ginzburg, torna-se n�tida a liga��o do autor com a abordagem micro-hist�rica. Ao centrar o foco em um ex-colono condenado pela inquisi��o e marcado por ambival�ncias, Pl�nio Freire realiza uma redu��o de escala a fim de perceber as tens�es existentes na �poca, ocultas nos documentos oficiais sob uma apar�ncia de estabilidade e uniformidade. Al�m disso, fica tamb�m patente que a obra se prop�e a ser uma �hist�ria vista de baixo�, uma vez que procura ouvir uma voz silenciada por um discurso dominante e reconstituir a hist�ria de um dentre tantos vencidos (no que segue outros historiadores brasileiros como Laura de Mello (1986), Lu�s Mott (1993) e Ronaldo Vainfas (1995).


No plano metodol�gico, em termos mais espec�ficos, pode-se perceber em Freire o emprego do �paradigma indici�rio� elucidado por Ginzburg (1989) em �Mitos, Emblemas, Sinais�. O perfil de Henequim � em larga medida tra�ado e interpretado com base nos ind�cios (� primeira vista irrelevantes) encontrados nos documentos, numa tarefa semelhante � realizada por um detetive (n�o � por acaso que o historiador italiano ilustra o paradigma indici�rio citando Sherlock Holmes).


No tratamento dado �s fontes que emprega, o autor leva em conta a j� referida presen�a de �filtros institucionais�. Os inquisidores, apesar de sua �disposi��o antropol�gica� no sentido de dialogar com a diferen�a, projetavam suas expectativas e terminologias nos depoimentos colhidos. A padroniza��o dos interrogat�rios inquisitoriais, bem como as circunst�ncias em que ocorriam (em um n�tido desequil�brio de for�as) tamb�m findavam por inevitavelmente deformar os discursos. � necess�rio, portanto, ler as fontes atrav�s desses filtros, decifrando-os, mantendo diante delas uma atitude de desconfian�a. Discutindo a rela��o dial�gica em que se fundamentam os documentos inquisitoriais, Ginzburg (1989, p.209) afirma que


Para a decifrar, temos de aprender a captar, para l� da superf�cie aveludada do texto, a intera��o sutil de amea�as e medos, de ataques e recuos. Temos, por assim dizer, de aprender a desembara�ar o emaranhado de fios que formam a malha textual desses di�logos [...] N�o h� textos neutros; at� mesmo um invent�rio notarial implica em um c�digo, que tem que ser decifrado.


� com tais pressupostos te�rico-metodol�gicos que Pl�nio Freire se aplica a resgatar em �Um herege vai ao Para�so� as vicissitudes de um personagem h� muito negligenciado pela historiografia brasileira. Em 1968, S�rgio Buarque de Holanda (1992, p.XXII), no pref�cio � segunda edi��o de �Vis�o do Para�so�, j� fazia refer�ncia a Henequim a partir do que Ernesto Ennes escrevera sobre ele na d�cada de 40. Este �ltimo tamb�m serviu de ponto de partida para o autor ao fornecer-lhe indica��es quanto a localiza��o do processo Henequim nos arquivos inquisitoriais.


Escrevendo sobre um condenado pela Inquisi��o, Pl�nio Freire Gomes (1996) engrossa as fileiras de uma historiografia peculiar cujos percal�os o mesmo sumariza em Brincado com Fogo: �O Acervo do Santo Of�cio como Fonte (S�) para Historiadores�. Nesse artigo, o autor aponta para o car�ter polemista da produ��o historiogr�fica sobre o universo inquisitorial a partir do s�culo XVI. Foi somente na segunda metade do XIX, e em solo americano, que essa produ��o superou seu tra�o anti-inquisitorial. Na Europa, o mesmo s� veio acontecer em meados do s�culo XX, representando a consolida��o de uma nova era naquele campo de pesquisas. Ainda no mesmo artigo, fica destacado que, al�m da quest�o dos �filtros�, quem quer que lide com fontes inquisitoriais ter� que enfrentar as freq�entes lacunas dos documentos, haja vista a destrui��o sistem�tica de muitos arquivos do Santo Of�cio. Superados os obst�culos, semelhante investiga��o se demonstra extremamente rica, oferecendo �a possibilidade de uma compreens�o da vida social impratic�vel para outros tipos de fonte� (GOMES, 1996, p.165).


Especificamente falando, �Um herege vai ao Para�so� se situa no �mbito da historiografia mais recente em torno da presen�a do Santo Of�cio no Brasil colonial, da qual Anita Novinsky (1972) e S�nia Siqueira (1978) s�o pioneiras. As mesmas influenciariam mais tarde obras como �O Diabo e a Terra de Santa Cruz�, �Rosa Egipc�aca � Uma Santa Africana no Brasil� e �A Heresia dos �ndios: Catolicismo e Rebeldia no Brasil Colonial�, para citar apenas as mais representativas. De um modo geral, todas elas compartilham do mesmo tipo de fontes e pressupostos te�ricos, trazendo uma abordagem qualitativa dos temas que exploram, adentrando no plano das mentalidades.


Duas categorias podem ser empregadas para caracterizar Pedro Rates Henequim. A primeira � aquela do �excepcional normal�, cunhada por E. Grendi, para os sujeitos hist�ricos que revelam as contradi��es do sistema em que vivem � ferramenta t�pica da micro-hist�ria, para a qual interessa perceber inconsist�ncias. Segundo Giovanni Levi (1992, p.28-29), �os micro-historiadores concentram-se nas contradi��es dos sistemas normativos e por isso na fragmenta��o, nas contradi��es e na pluralidade dos pontos de vista que tornam todos os sistemas fluidos e abertos.�


A contradi��o, a fragmenta��o, a pluralidade de pontos de vista e, acrescente-se, a ambig�idade, foram as principais marcas do universo no qual transitou Henequim. � justamente essa id�ia de �tr�nsito� que nos reporta � segunda categoria pass�vel de ser empregada para caracteriz�-lo: a de �intermedi�rio cultural� (que Pl�nio Freire empresta de Michel Vovelle). A refer�ncia � �queles que, convivendo com padr�es culturais antag�nicos, s�o incapazes de se identificar plenamente com qualquer um deles, demonstrando, por outro lado, desenvoltura no di�logo com os mesmos (� este tamb�m o caso dos mamelucos estudados por Ronaldo Vainfas em �A Heresia dos �ndios�) (2).


Pedro Rates foi, portanto, um personagem amb�guo procurando estabelecer um sentido para a realidade fragmentada que conheceu. Sua cosmologia representou um esfor�o no sentido de dialogar com a pluralidade, reelaborando dogmas que se propunham universais. O que norteou todo o seu pensamento foram as convic��es de que a ambig�idade era algo inerente � ess�ncia das coisas e que o di�logo era a chave dessa percep��o. Segundo ele, foi o conv�vio com o diverso que lhe trouxe a ilumina��o divina a respeito de verdades nunca antes descobertas. Nas palavra do pr�prio herege, s� � poss�vel compreender as Escrituras Sagradas �navegando Mares, andando Terras, tratando com gentes, observando-lhes os costumes, examinando �rvores e seus frutos e andando por c�rceres� (3).


O pensamento e a experi�ncia de Henequim representam duas faces de uma mesma moeda, ambos marcados pela ambig�idade. Era filho ileg�timo de um c�nsul holand�s (protestante) e uma portuguesa de baixa extra��o (cat�lica), Francisco Henequim e Maria da Silva e Castro � a primeira de uma s�rie de outras ambival�ncias.


Com a morte do pai, Pedro Rates � abrigado pelo consulado holand�s at� que um certo Rodolfo, frei dominicano, assume a sua tutela, temendo que ele aprendesse os dogmas protestantes. Quem se encarrega de cri�-lo � o padre Ant�nio de Oliveira Ribeiro, cura do vilarejo de Oeiras, em cuja casa funcionava uma escola prim�ria. De volta a Lisboa, Henequim � remetido para o col�gio jesu�tico de Santo Ant�o, novamente por interven��o do frei Rodolfo. Ali ele teve acesso ao hebraico e � teologia, bem como � literatura cl�ssica, sem, no entanto, concluir o grau superior. Essa forma��o forneceria a Henequim o aparato conceitual e vocabular de sua cosmologia, reeditando a seu modo os dogmas cat�licos.


Convidado pelo c�nsul holand�s a acompanh�-lo em seu retorno � Holanda, Pedro Rates opta por tentar a sorte na Col�nia � �poca da descoberta do ouro, atendendo aos conselhos de seu tutor dominicano, de modo que, entre 1702 e 1720, se aventuraria na explora��o das Gerais. Por outro lado, perante o Santo Of�cio Henequim admitiria tamb�m haver se dedicado ao estudo das Escrituras �para confutar os hereges�, os quais, de acordo com Pl�nio Freire Gomes, seriam cripto-judeus que o teriam introduzido aos preceitos cabal�sticos manifestos em v�rias de suas proposi��es (igualmente reelaborados de forma a combinar cristianismo e juda�smo, rompendo as barreiras que separavam as duas f�s).


A sociedade que Henequim conheceu nas Gerais se caracterizava pela subvers�o das regras e hierarquias, pelo nivelamento, nomadismo e desclassifica��o social (aspectos explorados por Laura de Mello em �Desclassificados do Ouro�) (SOUZA, 1986). Ele teve contato com outros portugueses que tamb�m estavam ali para tentar a sorte, escravos africanos e ind�genas. Assim, enquanto se dividia entre a minera��o e o estudo das Escrituras, dialogava com uma humanidade desenraizada. Convivendo com irrever�ncias e religiosidades diversas (muitas delas apresentadas pela j� referida autora em �O Diabo e a Terra de Santa Cruz�) (Souza, 1986) teria percebido as limita��es de um discurso religioso uniformizante � ponto de partida para a formata��o de um discurso alternativo que procurasse abranger as mais dissonantes vozes.


Essas teriam sido as experi�ncias mais influentes na forma��o da personalidade e do pensamento henequiniano. Dentre as suas teses, a t�tulo de amostragem, � naquelas relacionadas � Virgem Maria que mais se expressam sua excentricidade e o potencial teologicamente subversivo das mesmas.


A Virgem era a figura m�tica que mais fascinava Henequim, caracterizada por ele como Virago (�Virgem Varonil�), desprovida do orif�cio vulv�rio, ser andr�gino, amb�guo. Valendo-se da interpreta��o aleg�rica, o herege identificava sua presen�a em v�rias passagens das Escrituras � ela teria, por exemplo, aparecido simbolicamente na cruz, sofrendo juntamente com seu filho, para a reden��o das mulheres.


Convicto de sua divindade, neg�-la representaria atitude blasfema e her�tica � era Filha Unig�nita de Deus e Verbo divino tanto quanto Cristo o foi. A aus�ncia de orif�cios e da emiss�o de fluidos, encarada como monstruosa por seus inquisidores, n�o representava para o herege sinal de imperfei��o, mas de sua isen��o da culpa original. Segundo ele, o reconhecimento dessa divindade traria uma salva��o universal com a aboli��o das penas infernais � inclusive para os dem�nios.


Trazendo em si as ins�gnias da indistin��o, a Virgem, sujeita a tantas leituras na Am�rica Colonial, detinha o destino do mundo em suas m�os, subvertendo assim o papel da Igreja e de Cristo como ve�culos de salva��o. Abandonada a no��o de castigo eterno, caiam por terra as hierarquias que dividiam os homens com base no m�rito. Se o discurso institu�do reservava ao diverso os tormentos do Inferno, Henequim, por sua vez, preconizava que todos, indistintamente, seriam inclu�dos no Para�so. A reden��o na ambig�idade incluiria todas as ambig�idades poss�veis.


Convertido pelo Santo Of�cio em �ministro de Satan�s�, Pedro Rates Henequim n�o dialogaria com mais ningu�m por quase tr�s s�culos. Redescoberto nos documentos, liberto da pris�o dos filtros pela interven��o do historiador, seu espectro pode ainda hoje assustar vis�es de mundo fechadas ao outro, que excluem a diversidade presente na pr�pria ess�ncia das coisas.



Daniel Soares Sim�es


Notas

(1) Tem-se explorado a tese de que Henequim havia sido preso por motivos pol�ticos, ao se envolver numa conspira��o contra D. Jo�o V, aclamando seu irm�o, D. Manuel, rei do Brasil. Cf. ENNES, Ernesto. Uma conspira��o malograda em Minas Gerais para aclamar rei do Brasil o infante D. Manuel (1741-1744). In. Congresso do mundo portugu�s. Lisboa: VII Congresso Luso-Brasileiro de Hist�ria, 1940, vol. 11, p. 11-22. ROMEIRO, Adriana. Um vision�rio na corte de D. Jo�o V. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.

(2) Refiro-me sobretudo ao cap�tulo 6 da obra citada, intitulado "Ambival�ncias e ades�es".

(3) Cita��o do f�lio 251 do Processo Henequim.


Bibliografia

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GOMES, Pl�nio Freire. Brincando com Fogo: o Acervo do Santo Of�cio como Fonte (S�) para Historiadores. In. A Velha hist�ria: teoria, m�todo e historiografia. MALERBA, Jurandir (org.). Campinas: Papirus, 1996.

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HOLANDA, S�rgio Buarque de. Vis�o do para�so: os motivos ed�nicos no descobrimento e coloniza��o do Brasil. 5.ed. S�o Paulo: Brasiliense, 1992.

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SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no s�culo XVIII. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

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______; BICALHO, Maria Fernanda Baptista. 1680-1720: o imp�rio deste mundo. S�o Paulo: Companhia das Letras, 2000.

VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos �ndios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. S�o Paulo: Companhia das Letras, 1995.

______. A problem�tica das mentalidades e a Inquisi��o no Brasil colonial. In. Estudos Hist�ricos, n. 1. Rio de Janeiro, 1988.



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