"O neg�cio de Cristo": a Era das Cruzadas |
Rog�rio Rezende Pinto
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1. Contexto hist�rico
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�Desconhe�o a guerra justa.�
Murilo Mendes (1901-1975), O Disc�pulo de Ema�s.
�Deixai os que outrora estavam acostumados a se baterem, impiedosamente, contra os fi�is, em guerras particulares lutarem contra os infi�is [�] Deixai os que at� aqui foram ladr�es tornarem-se soldados. Deixai aqueles que outrora se bateram contra, impiedosamente seus irm�os e parentes, lutarem agora contra os b�rbaros, como devem. Deixais os que outrora foram mercen�rios, a baixos sal�rios, receberem agora a recompensa eterna [�]�
Papa Urbano II (1088-1099), exaltando os crist�os em Clermont, Fran�a, a se embrenharem em uma Cruzada.
Antes de se aprender sobre as Cruzadas em si � necess�rio ter no��o de como estava organizada a sociedade medieval. A sociedade feudal tinha sua estrutura estabelecida em estamentos.(1) Da� resultavam os nobres, o clero e os servos. Havia ainda, no bojo dessa sociedade um reduzido n�mero de escravos (COTRIM, 1997, p.103) e alguns homens que trabalhavam para os senhores feudais; mas n�o eram, necessariamente, servos, eram conhecidos como vil�es. Os feudos eram administrados pelos ministeriais que faziam a administra��o em nome do propriet�rio. A popula��o urbana era pouco significante e essencialmente constitu�da de pequenos mercadores e artes�os.
O movimento cruzadista originou-se nas peregrina��es que os fi�is faziam com destino � Palestina, tamb�m conhecida como a Terra Santa,(2) mais precisamente ao Santo Sepulcro. Essas expedi��es eram conhecidas, ent�o, por �expedi��o de Deus�, ou �neg�cio de Cristo� ou ainda, unicamente, pelo termo �a peregrina��o�. A palavra Cruzada s� passou a caracterizar tais movimentos a partir do s�culo XIII. A denomina��o adveio da decis�o dos soldados cruzados; de por o desenho de uma cruz sobre as suas vestes.
O clima cotidiano geral medievo era de extrema incerteza e inseguran�a. A mentalidade guerreira e violenta da nobreza feudal tornou-se um problema para a seguran�a e manuten��o do servo junto ao campo. Os senhores feudais ora estavam enfrentando-se em torneios, ora estavam diretamente travando batalhas campais. A Igreja, a principal favorecida de imensas extens�es de terra, n�o via com positividade essa perturba��o da ordem medieval. A solu��o encontrada pelo alto clero foi proclamar prote��o aos lavradores, viajantes e mulheres. Esse ato � a chamada Paz de Deus. Outra v�lvula de escape para controlar os n�veis de viol�ncia foi a proclama��o da Tr�gua de Deus, que consistia em um limite a ser severamente respeitado de no m�ximo 90 dias de combate por ano, sendo que houve ainda a proibi��o de se combater �s sextas-feiras, aos s�bados, aos domingos e �s segundas-feiras. Nessa lista inclu�am-se, ainda, os dias de festa religiosa. Como n�o se muda a mentalidade de uma para outra hora, a canaliza��o do esp�rito b�lico dos senhores feudais foi toda direcionada, mais tarde, para o movimento cruzadista.
Nesse per�odo, os europeus, constantemente, estavam em guerras ora contra os mu�ulmanos (da regi�o mediterr�nica), � j� ent�o chamados de �infi�is�, ora contra tribos da Europa oriental � consideradas pag�s. Na verdade, esses conflitos n�o eram as Cruzadas de que aqui trataremos. Eram movimentos cujo objetivo primeiro era o de pilhagem de bens e terras e n�o contavam, necessariamente, com as b�n��os da Igreja. J� existia entre os europeus o interesse em apoderarem-se das grandes e riqu�ssimas cidades e rotas comerciais do Oriente Pr�ximo. Esse elemento associado ao esp�rito guerreiro da nobreza medieval juntamente com a extrema religiosidade popular eram os ingredientes ideais para canalizar as energias para a obten��o de algum resultado concreto. Faltava algu�m que determinasse quem deveria receber o t�tulo de inimigo de todos os crist�os. O t�tulo de �infiel�. Para os fi�is, as pessoas comuns, existia um sentimento religioso puro de resgatar a terra que estava sob dom�nio mu�ulmano. O homem comum medieval estruturava os seus valores cotidianos a partir da servid�o a Deus e � Igreja primeiramente e, em seguida, ao senhor feudal. Como j� se sabe e j� se disse, os homens tendem a atribuir a Deus as suas pr�prias vontades. Lan�ado o discurso de combate aos infi�is mu�ulmanos, o discurso se complementava com a id�ia de que combater os infi�is era agradar a Deus e alcan�ar a salva��o eterna; al�m, claro, de obter a satisfa��o material que os saques e invas�es proporcionariam.
Em uma �poca de extremo sentimento religioso e de extrema valentia espont�nea por parte dos nobres, havia tamb�m na Igreja Cat�lica um real sentimento religioso de recupera��o dos locais sagrados no oriente para os crist�os. Entretanto, havia alas dessa mesma Igreja que percebendo que a f�rmula fervor religioso somada � exacerba��o de valores militarizados seria �til para a conquista de outros territ�rios, riquezas e fi�is. Em rela��o �s Cruzadas, Biz�ncio, a antiga Constantinopla, a capital e cidade mais rica do Imp�rio Bizantino estava por demais pr�xima do sempre expansivo e amea�ador Isl�. A Igreja, com sede em Roma, desejava com as Cruzadas justamente fazer frente ao Isl�, conquistar novos territ�rios e riquezas e fazer, tamb�m, frente a Igreja Ortodoxa,(3) cuja sede era em Constantinopla. Para o Imp�rio bizantino, uma expedi��o militar que viesse a fazer frente ao expansionismo mu�ulmano era por demais conveniente. Desde o ano de 1054, o patriarca de Constantinopla rejeitou a supremacia do papa romano sobre a Igreja bizantina(4). A partir de ent�o, o epis�dio que deu origem � divis�o entre as duas Igrejas ficou conhecido como o Cisma do Oriente. Para os cat�licos a quest�o da fragiliza��o da autoridade da Igreja Romana agravou-se, ainda mais, com a quest�o da Querela das Investiduras. A oportunidade que, ent�o, se apresentava, foi percebida pelo papa Urbano II(5) como o momento de tentar fazer frente a cristandade oriental e, quem sabe, at� reunificar as duas Igrejas.
N�o se pode deixar de destacar outro fator importante para incentivar a montagem dessas expedi��es ao Oriente Pr�ximo. Na pen�nsula It�lica, as cidades, entre outras, de Almafi, G�nova, Pisa e, principalmente, Veneza eram centros comerciais de extrema import�ncia para o abastecimento comercial da Europa. Os mercadores dessas cidades eram os respons�veis em adquirir e revender para os demais europeus as sedas, musselinas, tapetes, especiarias orientais de todo tipo, drogas e outros produtos que tinham origem no distante oriente. Dessa forma, para as cidades italianas, as Cruzadas n�o eram unicamente um fator de f�, era tamb�m uma oportunidade para fortalecer a sua presen�a no mundo do com�rcio mediterr�nico. Veneza, ap�s o processo de ruraliza��o da sociedade europ�ia, havia mantido um estreito e ben�fico relacionamento com Constantinopla, por isso temia a expans�o e monop�lio do com�rcio nas m�os dos mu�ulmanos. Veneza, Pisa e G�nova na verdade ansiavam cada vez mais por melhores e maiores oportunidades de com�rcio. As Cruzadas poderiam, ao menos em parte, atender a esse objetivo.
Notas
(1) A organiza��o da sociedade estava embasada em grupos sociais que fundamentavam-se em uma tradi��o jur�dica espec�fica e, ainda, na diferencia��o da atividade social a ser cumprida no seio da sociedade. Dessa estrutura resultavam os nobres, o clero e os servos. Com isso, praticamente, inexistia a mobilidade social. Um nobre jamais acabaria como servo ou vice-versa. O mesmo iria ocorrer com um membro do clero. Um abade jamais viria a tornar-se um marqu�s.
(2) Entre os s�culos VIII e X ficaram registradas 34 peregrina��es. No s�culo XI contam-se 117.
(3) Tamb�m conhecida como Igreja Cism�tica Grega.
(4) A causa da divis�o foi devido a uma disputa sobre a forma exata do Credo. Essa disputa al�m de gerar a cis�o na Igreja, provocou o an�tema entre as duas institui��es crist�s.
(5) O discurso de Urbano II n�o foi fielmente preservado por nenhum cronista da �poca. Foram escritos anos depois de pronunciado pelo pont�fice. Sabe-se, naturalmente pelos resultados e conseq��ncias que ocasionou, que fez um dos grandes discursos da Hist�ria. Os historiadores hoje tratam com cautela os registros que abordam sobre esse discurso. � claro que registrou-se o que deveria ou poderia ter dito Urbano II, mas n�o realmente o que foi dito. Entretanto, � aceit�vel a ess�ncia das palavras registradas em diversos relatos posteriormente produzidos.
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